Uma taça – André Soltau (Conto a Gotas)

Para narrar essa história é preciso perder o medo de julgamentos morais que carregam ortodoxias e fés enviesadas. Conto a vocês para que tirem suas próprias conclusões.

Clotilde, ou Clô, não tinha papas na língua. Quando precisava, dizia o que era necessário sem medo. E não importava a quem fosse. Tinha seu senso de justiça e isso poderia ser incômodo para muita gente esnobe da cidade. Não tinha rabo preso com nada e ninguém. Ao contrário, sabia muita coisa de muito figurão e não tinha medo de abrir a boca se preciso fosse.

Claro que, assim sendo, levantava suspeitas e olhos tortos em um lugar que adora frases de efeito que não dizem nada, eventos vazios de conteúdo e muita gente com pose e nada no bolso. Não temia. Vivia sua vida com contas em dia sem dar motivos de futricas. Era polida com qualquer pessoa e sempre tinha boas soluções para momentos tensos.

— Que cuidem dos seus homens! — dizia Clô.

Em uma casa bem asseada, situada na barranca do rio, Clô começou seu negócio com pouco dinheiro e um tino de administração formado na vida dura que teve desde menina, quando moedas tinham que dar conta do alimento diário e um canto para morar.

Os começos nem sempre são fáceis. Fazia jornada dupla quando limpava casas no dia e nas noites atendia os primeiros clientes. Aceitava qualquer um disposto aos prazeres ligeiros e uns goles de cachaça barata. Mas, econômica, assegurou um atendimento discreto, quarto sempre bem arrumado com lençóis limpos e um copo de cachaça de brinde. Assim foi criando nome e ganhando a fama que trouxe novos clientes para o negócio próspero.

Os anos passavam e a casa tinha popularidade entre os marítimos e alguns figurões da cidade fugiam de seus tradicionais lares respeitados para um folguedo na casa da Clô, que já contava com um bar recheado de boa bebida, belas moças e quartos em tamanho e conforto diversos.

Casa da Clô, assim chamada por todos os clientes e desafetas. Mas o nome que estava na placa chamativa em cores vivas fazia jus ao lugar: Gruta Dourada.

O lugar tinha fama de ser limpo e organizado. E, segundo as boas línguas da cidade, mensalmente recebia a visita de um médico que verificava a saúde das moças e, em troca, ganhava mimos pelos serviços prestados.
Clô administrava com mão de ferro e nunca deixava uma funcionária passar aperto. Quando atingia certa idade e não podia atender os clientes com o mesmo vigor, mudava para funções não menos importantes no recinto. Atendia o bar, fazia a limpeza rápida dos quartos para receber um novo cliente ou cuidava da porta para evitar a entrada de exagerados no álcool.

No lugar privilegiado da casa era o quarto de Clô, que não atendia mais clientes, mas tinha o seu predileto – o qual protegia das más-línguas e investidas da polícia local. Uma mão molhada aqui, outro trocado ali, e as coisas ficavam tranquilas para que ela seguisse o seu negócio. O
figurão era bem tratado quando ali chegava e diziam que a esposa oficial gostava quando ele visitava a Gruta. Ficava mais calmo e até almoçava com ela no dia seguinte.

A maioria dos clientes era de marinheiros que tratava a casa como lugar de passagem, prometiam amores e presentes de outras terras e, muito raramente, voltavam com as promessas cumpridas.

E, claro, o lugar recebia seus clientes inusitados. O pároco da cidade costumava frequentar com certa regularidade o local com a desculpa de que era lá que a palavra do senhor deveria chegar. Além disso, contava uma das funcionárias da casa que ele gostava milhos para ajoelhar, correntes, chicotes e máscaras em rituais nada sagrados.

O caso é que Clô mantinha o respeito na cidade, sempre assegurando boas relações com famílias tradicionais e com o inspetor de polícia que frequentava o bordel. Um caso de amor e ódio ligava a moral da cidade aos negócios da Gruta.

Toda sexta-feira, Clô costumava se dirigir ao centro da cidade para comprar necessidades colocadas em uma lista que ficava pregada embaixo do balcão do bar, preenchida durante a semana toda vez que alguém sentia falta de algo. Na manhã do dia, ela lia vagarosamente os itens e escolhia as prioridades.

Num desses dias de compras no comércio local, o item principal que estava em falta era uma das bebidas prediletas do figurão de Clô: um cabernet encorpado de marca especifica, encontrado somente em um local. Quando entrou no estabelecimento estranhou a reação do dono quando disse “bom dia” e recebeu uma resposta trêmula.

Não demorou em ver que só havia três pessoas no local. Ela, o dono e a esposa do dito-cujo figurão. Ambas se tratavam com modos gentis e bocas torcidas. As duas procuravam pelo mesmo produto, do qual restava apenas uma garrafa na prateleira. Uma.

O dono já achava modos de mostrar para elas outras opções de vinhos muito mais caros e igualmente bons. Mas era uma questão de honra levar aquela garrafa. Não demorou para que as mãos se encontrassem no caminho em direção ao cabernet tão desejado. Os olhos se cruzaram e foi Clô que não resistiu ao riso seguido de uma proposta inusitada.

— Uma senhora tão fina como é, não vai se rebaixar em brigar com uma puta por uma garrafa de vinho não é?

Um desconforto, uma olhadela para o dono que já temia em suores e um sorriso sem graça deram a resposta para a pergunta tão inesperada.

Clô pegou a garrafa e educadamente sorriu em direção à madame desconcertada e espumando pelo canto direito da boca. Pagou pelo produto, pediu duas taças de cristal em exposição no balcão e segurou o embrulho com altivez. Saiu vagarosamente.

Minutos depois foi a madame que saiu cabisbaixa segurando uma sacola com uma garrafa de bebida desconhecida. Surpresa ficou quando encontrou, no banco de madeira posto na porta do estabelecimento, a puta sentada com o vinho aberto e duas taças servidas.

Um gesto de Clô a convidou para sentar com outra pergunta inusitada:

— Uma taça?

André Soltau é doutorando em Patrimônio Cultural (Univille/SC), historiador (UFSM/RS) e mestre em Educação (UFSC/SC). Atuou como professor de ensino fundamental e deu aulas em diversos cursos do ensino superior. Publica livros, em gêneros variados, desde 2002. Pela Kotter, assina – em parceria com Kátia Nascimento – os contos de Fio do silêncio (2022). Mensalmente, lança textos inéditos na Revista Sucuru – Literatura e Arte Contemporânea.

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