A rotina era sempre a mesma. Acordava cedo, aquecia as carnes já preparadas na noite anterior, abria a massa, recheava, fechava e embalava cuidadosamente para carregar no isopor. Prepara a bicicleta, arranja a cesta com uma toalha que protege o forno pequeno, um vaso com flores secas, caixinha com troco e amarra a mesinha desmontável com um banquinho. Pega a rua e pedala por aproximadamente 30 minutos até o ponto de venda embaixo da árvore nas proximidades da igreja matriz da cidade.
Naquela rotina, faça chuva ou sol, Jussara criou o filho sozinha, pagou contas e, com esforço, sobravam trocados para uns presentes que dava ao pequeno e para sua velha mãe que cuidava do menino enquanto ela vender seu pastel nas feiras e diariamente nas ruas da cidade.
Mesmo que não quisesse, sua beleza e sorrisos chegavam antes. Não perdia nem para o cheiro apetitoso do seu pastel que conquistava pelo tempero bem dosado e uma massa sequinha e crocante feita com uma pitada de cachaça. Todo o dia tinha uma piadinha, uma graça, uma cantada barata, uma frase dúbia sem falar naqueles que insistiam, avançavam e já iam tocando no braço, mexendo no cabelo e convidando para uma conversa noutra hora. Tinha, ao seu lado, a amiga Rita que avançava no pescoço e soltava o palavrão a tempo de ver o machão correr sem olhar para trás. Mas ela nem sempre estava ali.
Já fazia algum tempo que Jussara começara a carregar – além de sua mesa, forno, isopor com pastéis e um banquinho – uma série de pastéis especiais para bem clientes especiais. Deixava embaixo do isopor para ser servido na mesa bem arrumada com toalha e folhas secas decorando em um prato maior. Era preciso agradar aos que mereciam.
Acabava a manhã e apareceu um senhor conhecido na cidade por ser de família rica e tradicional com sobrenome respeitado também casado com senhora de outra família dona de muitos imóveis pela cidade. Bem alinhado, com roupas caras e perfumado. Chegou pedindo um pastel de camarão. Era a primeira compra do dia que estava parado.
Jussara nunca deixava cliente sem uma boa e simpática conversa. Foi logo sorrindo e comentando sobre ventania do dia e das dificuldades manter a mesinha e toalha em pé. O senhor sorriu, aproximou-se, arrumou o cabelo e foi falando com voz lenta e baixinha que ela, uma mulher tão bonita, não precisava passar aquele trabalho todo na vida e que bastava desejar viver novas aventuras na vida que tudo iria facilitar para ela.
Já tarimbada no assunto lengalenga que sabe em que pé irá chegar, Jussara foi tratando de abrir o isopor e pegar lá no fundo um pastel especial de camarão para colocar no prato de papel e aquecer no forninho que serviria muito tem ao cliente da vez. Sempre sorrindo sem dar corda para o assunto, ouvia a conversa mole e as promessas de ajuda com outro emprego, um lugar mais próximo para morar e cuidados para que ela melhorasse de vida.
Que preguiça, pensava a mulher. Que preguiça desses que usam muito bem as autorizações que essa sociedade lhes dá para importunar as mulheres. Sempre sorrindo ia alimentando os pensamentos, fazendo de conta que ouvia o sujeito e controlando o forno com o pastel especial para encher a boca que não parava de falar asneiras.
Muito educado, o sujeito não chamou atenção de Rita que esticava o olho para banca de Jussara. Sentou na mureta do jardim, segredava bem próximo de Jussara que sorria em movimentos rotineiros e tranquilos. Por dentro, um turbilhão de raiva, nojo e reações. Logo, logo ele irá ficar bem animado com o prato servido quente.
O forno demorou a aquecer naquele começo de dia. E o assunto do homem não parava. Promessas eram acompanhadas pela proximidade do rosto nos cabelos de Jussara que sorria e se afastava com educação. A mão masculina, que carregava um anel no dedo menor, foi tentando alisar o cabelo da mulher que se esquivava já inquieta. E aquela conversinha que insistia em dar o céu para quem o ouvisse.
A vendedora se desculpava pela demora em servir. Queria que o prato chegasse bem quentinho na mão do cliente. Ele não dava importância dizendo que assim teria mais tempo com ela. Rita já se movia para quebrar o assunto quando Jussara só levantou a mão pedindo calma para a amiga.
Quando o forno deu sinal de que estava pronto para receber o pastel especial Jussara começava a ficar inquieta com o sujeito que avançava em sua direção. Estava entre chamar amiga ou reagir com grosseria. Mas, preferiu servir o prato quente.
Depois de aquecido, o forno é ligeiro, pensava ela. E assim foi. Retirou cuidadosamente o pastel aquecido do forno, serviu no prato maior, colocou delicadamente o guardanapo com dobras na lateral e entregou ao homem que não perdeu a oportunidade em passar as mãos na mão suada de Jussara elogiando o tamanho do pastel e pagando pelo serviço.
Ela seguiu sua lida de limpeza e organização enquanto o sujeito se arrumava, alisava o cabelo, usava o guardanapo para limpar o suor da testa e alinhava a camisa de tecido fino embebida em perfume caro. O pastel fumegava no colo do inconveniente freguês.
Recomposto das tentativas com a bela vendedora, pegou o pastel sem tirar os olhos da mulher que só ria e piscava o olho discretamente para a amiga Rita que já estava em pé e inquieta vendo a situação que envolvia a amiga.
Antes da primeira mordida ainda teve tempo de falar uma última asneira sobre o calor que deixava ele animado. Jussara não ouvia nada, só ria com um tique nervoso discreto no canto esquerdo da boca dando sinais de que a paciência estava no limite.
Uma mordida generosa. Silêncio! Boca cheia. Olhos arregalados e cabeça se movendo olha para um lado, para outro. Levanta agitado e deixa o prato cair espalhando restos de camarão, papel e massa. Corre apressado.
Ainda a tempo, Jussara falou alto com um sorriso sempre presente:
– Mande lembranças para sua senhora!
Rita arregalou os olhos sem entender o que acontecia. Correu até Jussara curiosa e cheia de perguntas.
– Nada como uma pitada da dedo de moça vermelhinha no camarão do moço né dá um sabor inigualável. Talvez ele tenha sentido falta da água para acompanhar.
As duas se abraçaram numa risada ouvida do outro lado da rua e Rita finalizou o evento:
– Prato bom é o que se serve quente amiga. Quente!
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André Soltau é doutorando em Patrimônio Cultural (Univille/SC), historiador (UFSM/RS) e mestre em Educação (UFSC/SC). Atuou como professor de ensino fundamental e deu aulas em diversos cursos do ensino superior. Publica livros, em gêneros variados, desde 2002. Pela Kotter, assina – em parceria com Kátia Nascimento – os contos de Fio do silêncio (2022). Mensalmente, lança textos inéditos na Revista Sucuru – Literatura e Arte Contemporânea.
Respostas de 8
Caro companheiro de literatura, André Soltau. Este conto é mais um dos tantos que tens publicado e de outros tantos que tens na gaveta (tenho certeza disso), e de muita qualidade. Lemos juntos vários. E muito me orgulha ter publicado contigo o Fio do silêncio, diga-se de passagem, pela Kotter. Esse fio vai longe, meu amigo, percorre mundos, atravessa mares e amarra bem amarradinha a nossa amizade. Parabéns à Kotter, que te abriga como contista/poeta que és. Para mim sempre poeta.
Parabéns pelo trabalho de escritor, e também de editor.
Abraços pra família, daqui desta terra de Pessoa.
Kátia Nascimento
ahhh que coisa boa de ler cumádi Kátia. Somos parceiros de conversas e não é um oceaninho de nada que vai parar essas conversas, cada vez, mais profundas. Sou grato por tua leitura sempre generosa.
Excelente texto que nos faz perceber que é bom perceber a multiplicidade de eventos que estão sempre acontecendo bem pertinho de nós. Uma história com sabor, cheiro e aconchego.
Exatamente Marcelo. Sabor, cheiro e aconchegos que vão nos dando a linha da história e escancarando o assédio descarado e machista. valeu pela leitura.
Texto que denota, mais uma vez, o olhar sensível e profundo do André para as situações do cotidiano, para as pessoas que o habitam e para a vida. Sou fã! Feliz de ver escrita dele neste blog!
Laura queridaaaaaaaaaa. Fico super feliz com tuas leituras sensíveis. Feliz por ter tuas percepções por aqui também.
Eai professor, gostei da forma leve e contundente como abordou o assédio e a importância de apoiar estas guerreiras. Abraços
Salve amigo Celso. leve, e nem por isso, assustadora. Quando vejo homens que pensam ter esse direito na cara dura, me enoja. valeuuu amigo.