A encomenda (um conto de Natal)

Flavio Jacobsen
— O bom de ser punk é que o coturno tem mil utilidades!
— Cala a boca, Nicolau! Entra logo que hoje a casa tá lotada.
Nicolau termina de vestir a horrorosa roupa vermelha. Olha orgulhoso para o coturno,
meio surrado, mas que combina à perfeição com a calça. Sem lustre no pisante, veste a
touca, agarra o saco, coloca às costas com uma mão. Com a outra, fechando o armário
dá uma última olhada na carteira, onde guarda cuidadoso uma passagem para
Congonhinhas, no Paraná. Conseguiu um pinga-pinga de madrugada pela Ouro Branco
que deve demorar algo como dez horas em estrada ruim, algumas de chão, até lá. Passar
Natal com os seus.
Pouco antes de sair do vestiário, encontra o Damião, um dos anões do show. Breve
cumprimento, pergunta da encomenda.
— Tá tudo certo, Nicolau. Mas vamos ter que passar na quebrada antes. Dá tempo, né?
— Cara, o busão sai às duas da manhã. Cê não vai me complicar…
— Fica tranquilo, Nico. É de boa. Rapidinho.
— Vamos, Nicolau. Porra! Tá atrasado já, caralho! — a chamada é do diretor de
marketing, que incorpora um homem da Broadway agora, em chiliques e visual de
bicheiro de quinta categoria.
Nicolau adentra a praça do shopping. Quatro anões o seguem, sorridentes, vestidos de
duende. As luzes do pequeno palco, onde fica o trono de Papai Noel, tremelicam em
efeito strobo ao som de uma música de John Lennon, na voz de uma cantora brasileira.
“Então é Natal / e o que você fez…”. Gritaria da criançada. O de praxe. Sorridente,
Nicolau acena à multidão, os anões aos pulos em torno. Triunfal, senta-se ao trono,
empunha o ridículo cajado em forma de doce de natal gigante, listrado de vermelho e
branco. A imensa fila começa a se formar. Gritaria. As assistentes gostosas do shopping
tentam conter a turba ignara dos infantes, enquanto os pais já estão em seus cafés e
boutiques para trás do cercadinho, alguns olhando de longe seus rebentos em fúria. A
fila então se forma. Uma a uma, as crianças vão chegando. Quase todas, raras exceções,
lhe puxam a barba grisalha. Isso acontece com todos os atores que fazem este papel com
cachê razoável em dezembro. A diferença é que a barba de Nicolau é verdadeira, em
que pesem seus apenas 38 anos. E isso dói. “Lá vem aquele pentelho sardentinho de
novo. Esse filhote do demônio está aqui pela décima vez. Ele não se cansa”. E o
sardentinho puxa-lhe a barba. Nicolau aperta forte o cajado a cada criança que lhe
aparece. Vontade de dar na testa.
Três horas passam demoradas como nunca. O último dia é sempre o pior. Termina a fila
da manhã, enquanto a da tarde já começa a formar. Nicolau sai para o intervalo de 40
minutos. Mesmo com o ar condicionado do shopping, seu corpanzil gordo dentro
daquela roupa o faz suar em cântaros. Descansa sentado ao banco no vestiário, onde
alguns salgados e doces o esperam, com refrigerante e água. Ele e os anões. Terminam
de comer. Damião senta-se ao lado.
— Ô, pouca sombra! Tranca a porta ali um minutinho — diz Damião a um dos anões,
que esforçado alcança a fechadura e gira a chave.
Damião estica duas carreiras generosas sobre um prato. Nicolau sem muito esforço
aspira as duas, uma com cada narina.
— Dá-lhe, papai Noel! Esse é estéreo! Uma de cada lado — brinca um anão.
Encosta mais um pouco, dá um gole no refrigerante e começa a enxugar o suor antes de
colocar o uniforme vermelho novamente. Em dez minutos, todos então prontos para
recomeçar o mesmo ritual. Aos gritos do diretor de marketing do outro lado da porta,
vão-se. Assim passam as tardes e as noites, até perto das dez, todos os dias de
dezembro. Dia 23, último dia, hoje.

Dez e quinze da noite Nicolau e Damião estão dentro de um táxi rumo à favela. Nicolau
com a camiseta branca do Slayer, calça jeans e o indefectível coturno, barbudo e
cabeludo, que agora lembra um membro do ZZ Top. Damião, engraçado com um boné
dos Nicks, camiseta preta Ramones, jeans e tênis. Um anão roqueiro. E do basquete.
— Damião, meu ônibus sai às duas da matina. Você não vá me foder….
— Calma, Nico. Vai dar tudo certo. Só temos que tomar uma cervejinha na quebrada e a
coisa já chega e daí é cada um pro seu lado, boas festas e tchau.
— Puta merda, tem que esperar?
— É só um pouco, porra! Fica tranquilo. E você vai gostar da roda de samba lá da
galera…
— Samba? Puta que pariu…
Um silêncio se instala, o taxista ouvindo sertanejo diz que não entra na favela. Deixa os
dois na entrada, há coisa de um quilômetro do boteco. Nicolau com pesada mochila.
— Que beleza hein, Damião? Puta merda, viu….
— Cara, não reclama, é uma caminhada leve, eu que sou anão não tô reclamando.
Quando chegam ao bar, a hora já bate onze. A roda de samba está gigante, mas
conseguem mesa e cadeiras pra fora do bar. Uma fauna de rappers, sambistas e
roqueiros de vila, com garotas em trajes sumários rebolando a valer faz tudo parecer
mais leve, um tanto.
— Cara, se o táxi não sobe até aqui, como irei voltar? Meu ônibus é duas horas.
— Calma, Nico. Porra, tenho camaradas aqui. Qualquer coisa arrumamos uma carona
fácil.
— Tá bom. Pega uma cerveja lá, então.
Não demora até os primeiros engraçadinhos se aproximarem da mesa pra fazer fotos
com o “Papai Noel do heavy metal”. Nicolau atendia a rapaziada. Era uma selfie atrás
da outra. Ao reparar no mar de celulares, lembrou-se que não havia enviado sequer uma
mensagem para a família. Agora, tarde demais. Sem crédito ou wi fi disponível, negócio
era partir pra rodoviária direto, sem comunicação anterior possível. Três ou quatro
cervejas depois e nada da encomenda. Damião dava a mesma resposta. “Calma, cara.
Eu conheço a quebrada…”. Ao quê, aproxima-se um outro sujeito.
— Daí, Nicolau.
— Oi? — Nicolau responde sem saber.
— Cara, o bagulho vai demorar um pouco tá?
— O quê? É você o cara?
— Não, não. Minha tia é que prepara a coisa.
— Tua tia? Putz, cara. Vai demorar muito? Meu busão é às duas!
— A coisa já vem, irmão. Enquanto isso, não é a fim de dar um tequinho? Tenho uma
boa aqui. Cinquenta pilas.
Nicolau não podia negar. Estava com boa parte do cachê, que já fora maior. Em
dinheiro. Escorregou uma nota de cinquenta por debaixo da mesa. O sujeito, de nome
João, visual rapper, boné de marca, lhe encaminha um pequeno pacote com um grama.
— Damião, seguinte: você paga a cerveja agora, tá bom? — Damião já estava no colo
de uma mulata, quase mamando nos peitos da mulher. E o samba comendo solto.
Meia noite. Metade do pacotinho já ia, e nada da encomenda. Aquela festa no entorno.
Nicolau, mesmo contumaz fiel à mulher em Congonhinhas, não resistia a uma morena
com um shorts mais curto que o salário mínimo. Já batucava na mesa com ela rebolando
ao lado. Um Zeca Pagodinho do tipo “deixa a vida me levar…”. João resolve puxar
papo.
— Cara, por que você precisa tanto da encomenda? Já pagou faz uma semana…
— É uma promessa que fiz pra uma rapaziada lá.
— Puxa vida, pessoal aí do interior do Paraná é ponta firme, hein? E a festa lá é boa?
— A gente mata umas galinhas, um porco, depende. E o resto é cachaça e cerveja.
Como em todo lugar. Eu venho todo ano fazer esse dinheiro e volto pra lá. Mas esse ano
resolvi meter a encomenda.
— Esse Papai Noel é ponta firme! — comemora João, braços erguidos ao samba, em
festa. Gesto que deixa aparecer o calibre 38 enfiado na bermuda.
Meia noite e meia. Fim do pacotinho. E nada da encomenda. Nicolau já sambava de pé
com a morena e escorregou mais cinquenta mangos pro João. Outro.
— Cara, cadê a coisa? Preciso ir!
— Calma ô, barbudão! Já vem!
— Cara, vocês tão me enrolando.
João se levanta da mesa, furioso. Chega com a cara bem perto de Nicolau, afastando a
morena.
— Escuta aqui ô, seu papai-noelzinho de merda. Tá pensando que eu sou moleque é? Se
eu te prometi o bagulho o bagulho vem, porra! E tem outra! Quem vai te levar na
rodoviária é o Migué. Chega aqui, Migué! — João acena pra outro sujeito, de aparência
mais velha. Este vestido de sambista. Camisa de seda, chapéu de palha, sapato bicolor e
calça de tergal. — E te digo outra: ele faz em 15 minutos daqui à rodoviária!
— Fica tranquilo que aqui é boleia, gorducho. Tá vendo aquele golzinho quadrado ali?
É a minha máquina que vai te levar. Ô, faz uma selfie comigo aí, irmão! Olha aí, galera!
É o Papai Noel, porra! — Migué clica o celular abraçado em Nicolau, sob os urros da
galera. E o samba comendo solto.
— Quinze minutos, cara? Jura? — Nicolau investiu 400 paus na encomenda. Não podia
deixar passar. Promessa é promessa. Promessa é dívida. Sem chance.
Resignado, Nicolau se rende à situação. Não há o que fazer. Uma da manhã. Damião
sobre a mesa sambando com a mulata. João já distribuindo pacotes em oferta natalina. A
morena esfregando aquele rabo na cara dele, vamos lá. Até que não tá tão ruim.
Adoniran aparece. “Soooouuu filho único… tenho minha casa pra olhar… não posso
ficar…”.

Na zona rural de Congonhinhas, Paraná, exatamente na primeira hora e meia do dia 24
de dezembro, a senhorinha encerra uma série interminável de Pais Nossos e Aves
Marias. Acende solene duas velas. Uma pra família, outra pro filho, que está na cidade
grande, trabalhando. Pede com toda fé um feliz Natal e muita prosperidade a todos os
seus. Faz o sinal da cruz em agradecimento, diante a imagem do Sagrado Coração de
Jesus.

Neste exato instante, Nicolau está cortando a zona norte da cidade de São Paulo, dentro
de um Gol velho, em altíssima velocidade. À uma hora e mais ou menos 59 minutos,
despede-se do preto sambista Migué, depois de uma nota de vinte. Retira a passagem e
entrega ao homem da Viação Ouro Branco. Senta ofegante seu corpo gordo à poltrona
26, corredor, incomodando uma moça com cara de estudante, na janela. Abre a mochila
e retira o pacote, aliviado. Rasga o papel da embalagem e confere a imagem de Nossa
Senhora, esculpida em madeira, estilo barroco de raro feitio. Um regalo para a mãe.
Obra da Tia Preta da Quebrada, que só ela. Dica do pequeno Damião, que por esta hora
jazia a noite em conforto, com a mulata do boteco.
Coloca os fones de ouvido, ajeita o banco pra trás, em solavanco que incomoda a
estudante ao lado. Seleciona Reign in Blood do Slayer (1986), produzido por Rick
Rubin, barbudo e gordo como ele, só que castanho meio ruivo. No último volume,
apesar de trincado, dorme o sono dos justos. Angel of Death. A paz de nosso senhor.

Flavio Jacobsen é escritor, roteirista e redator. Autor de Uns Contos no Bolso (Kötter, 2015).

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