Se Freud buscava nomear um “mal-estar na civilização”, Álamo Enfant parece ter encarnado-o na carne e na linguagem. Seu romance Um mal-estar fundamental, publicado pela Kotter Editorial, é um soco na boca do estômago, daqueles que ardem depois. Com um narrador que vai da infância espancada ao pensamento delirante sem nunca aliviar a tensão, a narrativa desmonta qualquer ideia confortável de família, memória ou identidade.

O livro parece escrito num fôlego só — e talvez até pudesse ter sido, não fosse o fato de ter mais de 1.400 páginas. Sem pontos finais, sem parágrafos convencionais, sem pudor. O que temos aqui é um fluxo caudaloso de consciência, de tripas, de pulsões e traumas que se embaralham em frases que não pedem licença para existir. O autor faz da escatologia uma estética. Do grotesco, uma política.

Um narrador que não quer te agradar

O protagonista (ou seria melhor dizer: o sobrevivente?) fala de espancamentos paternos com uma mistura desconcertante de ironia e estoicismo. Descreve o corpo da mãe e suas fezes como quem descreve uma paisagem: com atenção poética, mas também com crueldade. E, como se numa extensão de toda maldade enfrentada, surge toda uma civilização – marcado pelo horror que permeia a humanidade e sua insaciável vontade de poder. Não há pudor. Não há alívio. Há, sim, uma cadência que roça o riso e mergulha no horror.

Literatura brasileira à margem do bom-mocismo

Ao longo das páginas, o que se desenha é uma genealogia torta da vida brasileira: avós que fazem feitiços, pais que vendem gatos envenenados para açougue, tias que discutem orgasmos em velórios. Mas nada disso soa gratuito. Pelo contrário, é justamente na exagerada banalidade do absurdo que o texto de Álamo encontra sua força. Ele transforma o grotesco em ferramenta de linguagem e, mais que isso, de crítica social.

Um mal-estar fundamental não quer ser palatável — e essa talvez seja sua maior virtude. A linguagem é feita para incomodar. Para escancarar o que a maioria dos romances apenas sugere. Em Álamo, não há entrelinhas, há intestinos.

Um livro que não se esquece (nem se digere fácil)

Definitivamente, Um mal-estar fundamental não é para leitores tíbios. É para quem aguenta texto sujo, pensamento torto, narrativa sem manual de instruções. É para quem aceita que a literatura também é lugar de desconforto — e que, às vezes, esse desconforto é o único gesto de lucidez possível.