Ao ler o romance Machado (2016), de Silviano Santiago, recentemente, nasceu a ideia de revisitar os textos que escrevi sobre a obra de Machado de Assis. Eis que surgiu o convite da Kotter para escrever essa coluna. E aqui estou eu diante do desafio de escrever, em poucas linhas, sobre a obra do nosso Bruxo do Cosme Velho.
Nesse reencontro com a genialidade do nosso Bruxo, releio alguns de seus contos (escreveu aproximadamente duzentos no decorrer de sua vida) e um artigo meu sobre “A Igreja do Diabo”, escrito há alguns anos. O conto foi publicado originalmente no jornal Gazeta de Notícias (1883) e no volume Histórias sem data (1884). (Caro (a) leitor (a), se não leu, deve fazê-lo, uma vez que este é um dos melhores e mais instigantes contos machadianos.)
A figura do diabo habita o imaginário cristão ocidental de forma significativa. Na literatura, no decorrer da Idade Média e a partir desse período, a representação desse personagem aparece num número infindável de obras, tais como o Fausto, de Goethe, também em Shakespeare, em As intermitências da morte, de José Saramago, dentre muitos outros.
Em “A Igreja do Diabo”, Machado de Assis, numa narrativa alegórica e utilizando os pressupostos do gênero maravilhoso – “os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito” (Todorov, 2004) – apresenta um narrador que menciona um velho manuscrito beneditino em cuja história ocorre um inusitado e irônico diálogo entre Deus e o Diabo. Este comunica a Deus, não sem mostrar alguma insegurança, que está imbuído da brilhante ideia de criar a sua própria igreja com o objetivo afrontar os mandamentos divinos. “Vou fundar uma igreja”. Quando o Diabo, de algum modo, busca a condescendência de Deus, este refuta: “-Vieste dizê-la, não legitimá-la. –Tendes razão, acudiu o Diabo, mas o amor próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres”. Vangloriando-se, diante de Deus, o Diabo conclui que “as virtudes, filhas do céu, são em grande número, comparadas a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. “-Eu proponho puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…” E ainda numa atitude arrojada e sarcástica diante de Deus: “Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado”.
O Diabo, certo de que sua empresa seria exitosa proclamou que “as virtudes aceitas deveriam ser substituídas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza”. Não menos importantes, a ira e a gula também ocuparam seu lugar de honra na nova igreja. Acrescentem-se, além destas, a fraude, a hipocrisia e a venalidade. Esta última, convém destacar, era fundamental na visão do Diabo: “Se podes vender a tua casa, o teu boi, o teu chapéu […] como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua consciência, isto é, tu mesmo?” Não satisfeito, o Diabo quis extinguir toda a solidariedade humana. “Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição […] não se devia dar amor ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo”. E assim, o Diabo conseguiu o que mais desejava: “a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse”. Sua Igreja chegou ao ápice do sucesso e do reconhecimento. Decidiu até mesmo vestir-se como os religiosos da Igreja adversária: “ o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama”.
Entretanto, com o passar dos anos, o Diabo começou a observar uma estranha prática que ocorria entre os humanos. Nesta se configurava um movimento às avessas do que se via na Igreja de Deus: “muitos dos seus fiéis [do Diabo], às escondidas, praticavam as antigas virtudes […] Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas […] muitos dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias […] A descoberta assombrou o Diabo”. O narrador, já nas últimas linhas do conto, ressalta que “O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias” para total desorientação do Diabo que se sentiu inteiramente desolado e traído: “O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia”.
Diante dessa imensa frustração, o Diabo, num rompante, regressou ao céu com o intento de pedir a Deus alguma explicação, pois estava ávido para descobrir a razão de “tão singular fenômeno”. Deus ouviu pacientemente o Diabo, sem ao menos tripudiar de seu fracasso: “- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”. A Igreja do Diabo parecia ser vitoriosa com seus valores construídos e praticados às avessas, no entanto, o ser humano, com sua natureza inquieta e contraditória surpreendeu até mesmo a personalidade astuta e perspicaz do Diabo.
Malograda a tentativa do Diabo de se tornar o legítimo criador da humanidade “Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai”, o conto escrito no século XIX mostra-se extremamente atual sob vários aspectos. As disputas que ocorrem em determinados setores das igrejas, nos quais a busca desenfreada pelo poder e pelo dinheiro é a tônica principal nos vêm à mente quando lemos este conto machadiano. Ademais, que dizer da chamada “indução ao exercício da calúnia”? O que seria esse incitamento à difamação e à falsidade, nos dias de hoje, senão as famigeradas e tão destrutivas fakenews? Assim como “vender a palavra, a fé, a consciência, o voto e a si mesmo[!]…” – num evidente diálogo com Fausto, de Goethe, cujo protagonista faz um pacto com o diabo, Mefistófeles – vêm na contramão de quaisquer valores humanistas e éticos para a convivência humana. E, mais uma vez, salientamos que “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, parece ter sido escrita em pleno século XXI, tamanha a semelhança com a realidade contemporânea. A humanidade parece não conseguir se desvencilhar de sua sina, tal como reza o dito popular: “acender uma vela para Deus e outra para o Diabo”.
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Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF) e autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).