Por Sálvio Nienkötter
Áporo
Um inseto cava
Cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
Em país bloqueado,
Enlace de noite
Raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
I – O título:
O dicionário Caldas Aulete, o grande dicionário no tempo da composição deste poema, traz três acepções para o verbete áporo:
” inseto cavador da ordem dos himenópteros. (que reúne, por exemplo, também, formigas e vespas).
” uma situação difícil (Grego: άπορος sem saída). Em português via o άπορος grego temos o apuros (estou em apuro – mais usado no plural: estou em apuros).
” uma espécie (rara) de orquídea (esverdinhada, segundo Aulete).
Temos, então, um áporo (inseto)
que está em um áporo (situação difícil) mas que finalmente se transforma em um(a) áporo (orquídea).
II – O Inseto
Como inseto é ao mesmo tempo o sujeito, a palavra central e o primeiro substantivo do poema, tentemos uma dissecação (na verdade o substantivo desta dissecação foi feita pelo Arrigucci e valho-me dela acrescentando livremente poucas coisas):
Inseto é palavra que vem do latim insectum, cujo radical /sēc/ indica que os insetos possuem um corpo /sēc/, segmentado. Em português o núcleo do radical da palavra inseto, é /se/.
Tomando o radical /se/ e listando todas as unidades que lhe têm afinidade sonora temos: si, ce, ci, ze, zi.
Podemos também considerar o radical retroverso – radical espelhado – */es/ e suas unidades sonoras afins: es, is, ez, iz, ex, ix.
Voltemos ao poema para identificar essas sonoridades:
Um inSEto cava
cava SEm alarme
perfurando a terra
SEm achar EScape.
Que faZEr, EXausto,
em paÍS bloqueado,
enlaCE de noite
raIZ e minério?
eIS que o labirinto
(oh razão, mIStério)
prESto SE dESata:
em verde, soZInha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-SE.
Já no primeiro verso o /se/ aparece, soberbo, bem ao centro do verso. Aliás, na primeira estrofe o radical /se/ aparece seqüencialmente, inteiro e na ordem primitiva, três vezes.
Na quarta aparição vem invertido em forma /es/, e em sentido “escape”. Já que nas anteriores o /se/ era contido “aprisionado” por uma barreira – barragem – de palavras.
Nas duas estrofes seguintes, o /se/ começa a metamorfosear-se em ze, ex, is, ce, iz e es.
Na última, sofre a transformação final e liberta-se, glorioso, na palavra “forma-SE”, na qual a sílaba brota já livre, como a flor (orquídea) no ápice.
III -Em Busca de Uma Análise
Forma-se verde (orquídea esverdinhada) como a esperança, e, antieuclidiana. Ilógica, lógico, desafia com resistência a lógica da desistência. Ante o áporo, difícil, escava incessante (insetante?) uma saída.
O poema, antieuclidiano, é assim multilógico. Dá margem, ou antes, enseja várias interpretações:
Podemos ver no áporo-inseto o cidadão oprimido, (diminuído) pela ditadura (Vargas governava com mão de ferro-minério), inserto no “país bloqueado”.
O poeta censurado – silenciosamente trama a libertação. Na clandestinidade. (em 1945, o partido comunista catalisava a maioria dos intelectuais brasileiros e mostrava-se à época, a saída lógica).
Os versos “enlace de noite, raiz e minério”, fecham os quartetos prepositivos e, lúgubres, – noite/raiz/minério – evocam, ou podem evocar, a profundidade estativa do “novestadismo” getuliano.
O último verso “presto se desata” sugere isso na (clara) alusão ao nome de (Luís Carlos) Prestes. Presto se desata (Prestes sai da cadeia).
O áporo-inseto também é, ou pode ser, o poeta enfrentando a página em branco, buscando lograr escrever o poema. Uma situação sem saída que vem glosada na história do inseto e na condição do poeta.
Há um trabalho do poeta em construir o poema. O sentimento de desvalia do trabalho poético está incorporado no poema como um sentimento do mundo, de que o trabalho é reles e pequeno,… parece inútil.
No entanto, persistindo ele pode gerar (brotar vernal) o outro, e pode surgir de novo o novo. Gérmen broto. Redobro.
Há, claro, a história pessoal de Drummond com o minério e com o ato de escavar, de minerar e de “mineirar” na Itabira mineira. Um retrato na parede, mas como dói.
IV – A Cereja:
O texto, plurivalente, vale-se ainda de uma corruptela da expressão “sem alarde” para acomodar o “sem alarme”: homenagem a Mallarmé.
V – Uma Épica Num Soneto em Redondilha Menor
Ainda, no início: “um inseto cava, cava sem alarme” podemos também tomar o 1º “cava” como substantivo, como nome do inseto. Aí…
Aí que toda uma
teia se intrinca,
em épica heróica,
E em trama tróica.
A épica, parece, é a intenção principal. Como que conta o como – mas convoca, o povo heróico a levantar-se contra a tirania do bloqueia-povo. – O povo, mesmo que como inseto multifacetado, recurvado e rastejante; em bando pode escavar, enclavar, entricheirar, e como no inferno de Dante, descendo…, descendo…, por fim ascender. chegar ao céu da brota.
A polissemia da palavra áporo metaforiza a polissemia e a polivalência do homem. Funde-se o inelutável filosófico, o gnomismo do inseto-rastejante (lat. gnomus, calcado no gr. *génómos ‘habitante da terra’ ou no gr. Gnômé, és ‘julgamento; bom senso, reflexão; conhecimento’.) e a beleza inelidível da orquídea verde, verde-folha, verde-mar, verdejante, verde-viajante.
Capitaneado pelo poeta o povo, em glória, brota e ressurge, epopéico.
VI – A Mítica
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
Não é sem deuses que a raça gnômica vence. À pertinácia heróica soma-se a necessária mítica (antieuclidiana) e a esperança verde. Elixires únicos, revigorantes, do homem opresso.
Não é sem deuses que o poeta faz esta épica. Contracta. Sintética. Abusando da semântica. Mesmo que racional, é mítica. Nacional!
Se é poética, é pessoal, é, porém, também, épica, política, mas patriótica. Vota amor em verso à pátria universo.
A história do áporo é uma meditação sobre a possibilidade de ser fiel a si mesmo e nunca desistir da luta, apesar das dificuldades. (Arrigucci).