Circe – Roberto Ponciano

Despertar de um sonho dentro de um sonho. Fisicamente, Ulisses sentia-se desperto, se beliscou e sentiu dor. Sentiu odores, cansaço, fome, vontade de urinar. Estava num espaço escuro, dentro de um matagal que cobria sua cabeça, e era de noite. Mal podia enxergar nada. Sentia um aperto, uma vontade incomum de mijar. Segurava-se porque ainda acreditava estar em sonho, mas, na urgência de não molhar a roupa, tirou o pau para fora e mijou na terra. Ele não sabia ainda se estava urinando na realidade ou molhando toda a sua cama, neste sono-pesadelo-realidade. Sentia um pesado cansaço físico, medo e uma necessidade imperiosa de fugir. Escutou um barulho no meio do mato e uma sensação de que deveria sair dali. O coração quase saiu pela boca, na reação instintiva de lutar ou fugir. Sentiu uma pequena mão tocando a sua, suave, feminina, e uma voz imperiosa dizendo “vamos”.

Começou a correr atrás daquela mulher que ele não conhecia e, ao mesmo tempo, sabia que era íntima e próxima. Naquela dimensão surreal, seria algo como companheira ou mulher, ele não sabia claramente, mas da forma como ela deixava o corpo dele ficar próximo do dela, ele sabia que algo havia entre nós. Sentia tudo real, como o único mundo real, e só sabia que devia fugir, naquela trilha estreita no meio do matagal, atrás daquela mulher íntima e desconhecida. Chegaram a uma clareira, em que se localizava uma gigantesca casa de fazenda. Ela colocou o dedo na boca, como se exigisse silêncio. Ela falou quase no seu ouvido:

— Nossa única chance de sair é entrar na casa.

Como se a conhecesse, ele respondeu naturalmente:

— Ok, Pê, vamos entrar silentes. (Sem a conhecer, ele sabia que aquela bela mulher magra, morena, chamava-se Penélope.)

Havia dois guardas armados, tinham que passar despercebidos entre ambos. Mas ambos estavam distraídos, embebedando-se com uma garrafa de cachaça barata, como se soubessem que ninguém teria a ousadia de adentrar a casa de Circe.

— Cuidado, não acorde Circe — sussurrou Pê.

Conseguiram entrar por uma janela entreaberta numa lateral, abriram-na e fecharam com cuidado, conseguiram aterrissar sem barulho, ainda que os cães latissem fora da casa, mas Cérbero, o líder dos outros dois, Garmr e Hellhound, sempre latia, e os vigias acharam que seria um gambá ou outro bicho que os três viviam estraçalhando. Livres dos cães e dos vigias, Penélope e Ulisses entraram num intrincado labirinto. Havia um gigante molho de chaves na cozinha, mas, em cada porta trancada que eles abriam, abriam-se outros labirintos de portas, intrincadas, ora para baixo, com impressão de estarem no sótão, ora para cima, com escadas íngremes, para uma casa que, olhando de fora, tinha apenas um andar, e perderam-se durante horas subindo e descendo sem encontrar a passagem que estava no quarto de Circe.

Por fim, chegaram à entrada de um quarto, numa espécie de cúpula, que não se avistava do lado de fora. Abriram a porta com cuidado e lá estava Circe, adormecida.

Ulisses perturbou-se, morria de cansaço e medo e sabia que a vida dos dois podia estar por um fio. Era um quarto gigantesco, com um armário com várias portas e, dentro dele, diversas gavetas. Penélope aproveitou-se de que Circe estava adormecida e colocou um pano com éter, que havia trazido, no nariz da feiticeira (agora Ulisses entendera que era ela uma feiticeira e que estavam prisioneiros ali) para que ela desmaiasse e não despertasse com o barulho.

O quarto e os armários estavam encantados. Havia um molho de chaves que abria o armário. Em cada porta havia várias gavetas, e uma delas tinha a chave do portal de saída daquele sonho. O problema é que cada gaveta daquelas, presa tenuemente com um durex, tinha uma palavra escrita à mão: dor, medo, pânico, solidão, angústia, paixão, covardia, traição, ganância, perfídia, ira, cólera, luxúria, luto, tesão, paixão, delírio. E, em cada gaveta que se abria, como em filme, entrava-se, em minutos, num novo portão de lembranças vívidas, de momentos da vida dos dois, em sonhos separados, em que se lembravam de momentos.

Podem ter se passado minutos ou dias em cada um destes momentos. Ulisses lembrou da surra que tomou de três meninos, quando tinha 10 anos, e que o deixara de cama, com o braço quebrado; uma briga na escola que o fez ficar sem sair de casa quase um mês, pelo medo pavoroso que lhe inspirou; da vez que abandonou um amigo que fora espancado por outros, com medo de também apanhar dos agressores; lembrou-se da vez que batera num menino menor e mais fraco numa briga sem sentido, só para se mostrar “macho” para os outros amigos; da morte do pai e dos sonhos em que ele continuava vivo — e todos estes sonhos ali foram vividos como reais, pôde abraçar seu pai, sentir seu cheiro, sua barba, dizer o quanto o amava. Foi levado a uma festa de juventude, numa casa, na qual estava completamente bêbado e num quarto com mais cinco pessoas — três mulheres e dois homens —, na maior orgia de que participara, e que guardaria segredo pela vida inteira, pelas baixarias que vivera e presenciara, inclusive seus dois amigos transando entre si e um deles sendo sodomizado, enquanto as mulheres assistiam, rindo da cena. E, numa das gavetas, compreendera quem era Circe. Na lembrança guardada ali, soube que vivera dias de orgia com a feiticeira, felizes e intensos, de sexo e paixão, nos quais só a lembrança fugidia de Penélope o chamara a uma outra vida que não fora estar trepando com Circe. Como feiticeira, Circe providenciara que sempre houvesse bebida e comida, e com as porções dela, nunca se cansavam. Era um cio insaciável. Então entendera que ali tinha sido um prisioneiro voluntário do encanto sexual visceral e animal de Circe, vivera todas as fantasias e loucuras capazes de serem vividas com uma mulher, mas nunca houve um laço sentimental entre os dois, que não apenas este sexo animal, como dois cães no cio, agarrados, prisioneiros dos próprios instintos.

Nesta gaveta encontrava-se a chave do portal. E então, encontrou-se dividido. Depois dos dias que foram minutos, prisioneiros destes sonhos, estava de volta no quarto, entre Penélope e Circe. Circe estava seminua, com uma camisola transparente carmim, por baixo, apenas uma calcinha na parte inferior, e os seios rijos, pontudos, sobressaindo na camisola e um com o bico para fora dela. Abaixo, podia-se ver a calcinha minúscula, e ficou tomado de um grande desejo e tesão. Ficou duro no mesmo momento e com desejos de acordá-la e voltar a viver naquela cama, tudo que havia vivido fazia segundos naquele outro sonho, dentro do sonho, que durou dias.

Sentiu a mão de Pê na sua, sabia que tinha que ir. Era um dever, cego, um imperativo, como em Casablanca. Ele sempre teria Aiaía (esta ilha de Circe em que estava agora prisioneiro voluntário), este nome mitológico, que agora lhe vinha à cabeça e sabia batizá-lo em suas futuras lembranças e sonhos, em que dimensão estivesse. Porque, estranhamente, sentia que aquela realidade à parte talvez fosse uma realidade — até porque a vida é apenas um intervalo de um sonho de Brahma, um descuido dos astros que permitiram que nós, pequenos piolhos cósmicos, ocupássemos seus cabelos. A vida é sonho, e o sonho, sonho é. Não sabia se sairia dali, se estava dormindo, sonhando, ou se sonhando, aquela era a realidade mais viva e intensa negada quando estava acordado.

Abriram uma das portas do armário com aquela chave e saíram da casa, para outro caminho ou dimensão. Agora não estavam mais no matagal, mas numa floresta densa, intrincada, e novamente perdidos. Tropeçaram num tronco e rolaram por uma ribanceira, morro abaixo, machucando-se muito, e ambos estavam no limite. Esgotados física e mentalmente. Com fome, sede, sono. Aquele sonho avizinhava-se da morte. Ulisses lembrara das diversas vezes em que comparava o sono com a antecipação da morte. Por esta razão, as pessoas mais velhas acordam cedo e cada vez dormem menos. Têm medo de que, no escuro, o escuro se eternize. A morte venha, imperiosa e mãe de todos nós, e os leve. Talvez ao infinito, talvez ao nada, e todos nos tornemos obscuras lembranças de nossos desejos e medos. Choravam desesperados e abraçados quando foram resgatados.

Uma tribo de Cronópios, alegres e caritativos, como se fossem todos bons samaritanos, os levou e cuidou. Os Cronópios ainda adoravam Zeus, Oxalá e uma quantidade infinita de deuses. E acreditavam que pessoas maltrapilhas e famintas podiam ser, enfim, personificações desses deuses. Eram ametódicos, detestavam o trabalho, só trabalhavam o suficiente para comer e viviam em festa, poesias e orgias. Não havia casamentos entre os Cronópios, os filhos eram de todos e cuidados por todos, e não havia órfãos, e não existia a regra da monótona monogamia. Era uma tribo livre e nômade, que vivia na floresta e em fuga, porque viviam em risco de serem capturados pelo Fama para a cidade da “dura realidade”.

Os Famas já eram uma tribo “civilizada”. Monogâmicos, metódicos e gananciosos. A medida do sucesso deles estava relacionada a coisas. Por isso, não viviam, ou pouco viviam, e adoravam um deus que personificava a vida pós-morte, porque nesta vida não viviam.

Ulisses não sabia mais se estava acordado ou dormindo, enquanto estava hospedado pelos Cronópios e vivendo em paz, com Pê. Não sabia o que queria, não sabia por que queria as coisas que antes desejava. Estava numa dimensão de sonho ou apenas dormira, antes de abrir todas aquelas gavetas?

Escrito a partir de um sonho.

Respostas de 2

  1. Quem não se divide e se debate, entre 2 realidades, entre desejos e obrigações, entre o sagrado e o profano? Somos incompletos.

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