Por Anelito de Oliveira
Entre os poemas mais estarrecedores de Cruz e Sousa está, sem dúvida, “Tédio”, do livro Faróis, publicado em 1900, dois anos depois da morte do poeta, pelo seu amigo-irmão-de alma Nestor Vítor, paranaense de Paranaguá. “Tédio”, exibindo a atmosfera blueseira, ou banzeira, que caracteriza todo o livro, abre-se assim: “Vala comum de corpos que apodrecem”. Tudo que se processa a partir daí constitui um esforço notável de cartografia, de circunscrição de um lugar que vem a ser, afinal, uma lacuna, um abismo. Vemos, passo a passo nesse poema, algo que é de uma honestidade pensante absurda: um sujeito que não se percebe garantido por um determinado lugar, tampouco por um lugar seguro. Digamos, de modo bem simples, que esse sujeito se percebe como uma construção sem alicerce, suscetível a desabamentos.
Decorre daí, precisamente da metáfora de uma patente insustentabilidade, a noção de lugar de vala, que tenho cultivado há um tempo, chegando mesmo a inscrevê-la no título de um poema negro do livro “Desforra” (Kotter, no prelo), e agora resolvi eleger como titulo desta coluna. O trocadilho é bem evidente: um contraponto ao lugar de fala, conceito que vem sendo bastante utilizado de uns tempos para cá, explorado em livro pela filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro. Lugar de fala postula uma coesão entre o que se diz e o que se é, entre linguagem e pensamento. O lado interessante desse conceito, que quero ressaltar primeiro, é que limita a ação discursiva de elites brancas, ricas e heteronormativas que historicamente se vêem com o direito a falar pelos grandes contingentes de negros, pobres e Lgbts. O lado problemático, todavia, do lugar de fala é pressupor, na contramão de toda uma cultura psicanalítica já consolidada, um domínio total do sujeito sobre si mesmo, que ele sabe tudo sobre si.
A produção artístico-literária afromundana, que será o tema dos textos que publicarei aqui, distingue-se especialmente em virtude da sua resistência quase que natural a domesticações conceituais, que visam, no final das contas, disciplinar a vida social, de modo a torná-la administrável. Por isso mesmo não é bem um lugar de fala, algo definido, que encontramos na obra de um Ricardo Aleixo, artista por excelência da negação da negação, que nega tudo que é negado à comunidade afrobrasileira, numa permanente afronta aos autoproclamados donos da razão. Também não é bem um lugar de fala que encontramos num Edouard Glissant, o poeta e ensaísta martinicano que passou grande parte da vida na França, dono de uma obra avessa a simplificações hermenêuticas, capaz de colocar em questão até a serventia de traduções. Trata-se de algo muito mais complexo, que desafia nossa inteligibilidade ainda iluminista, colonizante, que, como sabemos, fundamenta o racismo de cada dia. Lugar de vala, mais além da fala, perto do nada.
*Anelito de Oliveira é doutor em literatura brasileira pela Usp e pós-doutor em teoria literária pela Unicamp, autor de Os acampamentos insustentáveis (Kotter Editorial, 2019) e O iludido (Páginas Editora, 2018), entre outros. anelitodeoliveira@globomail.com
*Autor da imagem: Anelise Freitas.