por Marcelo Ariel
Corpo de peixe em arabesco é a mais recente reunião de poemas de Jussara Salazar, lançado pela Kotter Editorial. Conversamos abaixo sobre o livro.
1-) É você naquela foto que abre o livro? Podemos dizer que existe a construção de uma transfiguração da memória em seu trabalho?
Sim sou eu com minha mãe. Toda construção poética do meu trabalho, e aí me reporto às experiências com arte visual, que foi a expressão inicial, desde sempre me pautou na memória bem como no esquecimento, como pensava Paul Ricoeur, a história e seu fio condutor historiográfico que desenha em seu interior um esquecimento que ressurge enquanto condição que dimensiona nosso estar no mundo, fatos como arquivos, e alguns mesmo como matrizes fundantes de nós mesmos. Nosso passado ameaça e desafia o presente com suas imagens, interdições, afetos. Gosto muito do resgate oral e imagético que flutua no mar cotidiano já tão saturado em que existimos. De repente aquele momento, uma fala, uma imagem perdida se reconstrói como poema ou desenho. Emerge emergências,, poemas.
2-) No primeiro livro ou primeira série A CABEÇA DO QUERUBIM MARÍTIMOS MARTÍRIOS há evocações na estrutura dos poemas de Nicanor Parra, Lezama Lima, Clarice Lispector, Waly Salomão. Vislumbres que compõe também uma teia de ressonâncias. Por que você os elegeu e como se dá este diálogo de afinidades eletivas dentro do poema ?
Eu sou uma leitora inconstante, embora já tenha e ainda uso certa disciplina nas leituras que proponho para artigos e textos acadêmicos, por exemplo. Mas alguns poetas e artistas me desorganizam, me xamanizam como indivíduos presentes em livros que tenho sempre por perto. Na verdade os tenho como musas impossíveis, veladas e às vezes descarnadas até os ossos. Evito leituras constantes, salto de uma leitura de determinado poeta para outra. Alguns são amores como Waly, que me procurou numa fila de autógrafo para explicar o significado de meu nome e depois conversávamos aos domingos pela manhã ao telefone. Lezama, amor, Nicanor, Clarice e muito, muito, Affonso Ávila que, junto com Cesar Leal, Celina de Holanda e Audálio Alves são o melhor que conheço. A presença de parte dessas energias ancestrais em algum momento estariam em algum livro meu.
3-) No poema UM FANTASMA A BEIRA DO RIO, é nítida a exposição de uma arte poética que é também uma espécie de manifesto que dialoga com outro poema A LÍNGUA DAS FACAS, está série de reflexões onde o poema se dobra sobre si mesmo por meio de analogias e evocações se fecham no poema DESESCREVO, onde lemos ‘ Meu livro é isso/um desescrevo’. O que seria um desescrevo? Uma desescritura, para você ?
Um fantasma à beira do rio é um poema quase câmara mortuária, eu poeta despida de toda casca das palavras, sem corpo nem porto, desescrevendo, cavando, desfazendo, destecendo. Essa série dos animais à beira do rio foi escrita no período em que morei recentemente às margens do Capibaribe [Recife]; eu que sempre duvidei do Cabral e do Bandeira sobre o Capibaribe, achava que havia poesia demais e rio de menos. Não não. Quando estive praticamente vivendo à margem do rio na Rua Aníbal Falcão em Recife, senti a maré como uma força descomunal, absoluta. Acordava com o canto de pássaros estranhíssimos naquele arvoredo pleno, presenciando as águas selvagens que invadiam toda a rua durante a chuva. Ali a cidade não existe, o que existe de fato é o Capibaribe, ruas sobre águas, gente vivendo sobre o rio e falando a cabralina língua de facas. A cidade desexiste, o poema se desescreve para dar lugar ao Bandeira menino sentado a mirar as águas desse rio. É inspiração mesmo.
4-) Como você vê a importância da poesia neste momento delicado de uma pandemia global que se soma a um governo anti-social de extrema direita?
Vejo esses fatos com bastante preocupação. A vida, o cotidiano de todos nós se transformou, os paradigmas pela sobrevivência agora se definem pelo ar, pela respiração, pela sintonia global. Um yanomami morre de covid como o executivo nova-iorquino. Um policial sufocou George Floyd diante do mundo e isso revelou a verdadeira face do racismo estrutural a que os pretos são submetidos há séculos. Uma criança negra de cinco anos cai do nono andar por uma atitude de desapreço da patroa da mãe. Mas agora a sensibilidade está à flor da carne, a pele é luxo. Algo se autoimplodiu nesses últimos meses, se esfarelou todo um sistema de domínio do capital financeiro que destrói a natureza e a humanidade e agora precisamos ter pulmões fortes, para gritar e sermos livres para caminhar pelas ruas. Para além disso nos havemos com a necropolítica de extermínio na ameaça fascista que ronda nossos corpos e como afirma Achille Mbembe “ a política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite”. Um limite nas bordas da condição do que se costuma definir como “humanidade” mas que foi construída mediante a violência e a guerra [Krenak]. A poesia é a contramão, é o desescrevo, a escavação da carne, a fruta descarnada. Nada que não saibamos desses órgãos que pulsam com o poema, afinal sempre lutaremos, antes e depois pelo direito de sermos, pelo direito à poesia. Escrever para desescrever. E desescrever é reconstruir, sempre.
Jussara Salazar é escritora e artista visual. Publicou Inscritos da Casa de Alice [1999], Baobá, poemas de Letícia Volpi [2002], Natália [2004], Caraurissonoros [2008], Carpideiras [2011], O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníforas [2014], Fia [2016], O dia em que fui Santa Joana dos matadouros [Prêmio Hermilo Borba Filho, 2019] e Corpo de peixe em arabesco [2019]. É mestra em Estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo.
Foto por João Urban