Meus quatro olhos iludiram-me: avistei. O avistado não era o que deveras fora, pele e osso, metal retorcido.
Embaralhar desmaios.
Ela nasceu dentro de uma biblioteca, entre onze estantes entupidas de livros, Donada era o apelido, daquela que lhe pusera na vida, “neste mundo quem não tiver, não terá!”.
De mãos dadas, a pequena ouvia, aquela que nunca esquecerá.
“Temo não! O que fizerem comigo, tá feito! Agora, com ela ninguém vai lascar!”
Neste estribilho, de pé, de mãos dadas, a pequena já conseguia caminhar.
Fizeram de duas uma, nos braços o calor era um só, seguiam cidade e enguiços, dormiam entre panos e papelões.
Donada era nome, da que foi ontem e hoje já não é.
Escorreu suas lágrimas por sobre a terra, chuvarada, roda pé, sem caixão e nem nome gravado.
“Donada, virou comida de terra.”
“Que vô fazê?”
“Deixa comigo, Donadinha, deixa comigo.”
Corria de mesa em mesa, pés descalços, flor e botão: “Me ajuda, moço”.
“Tenho dinheiro não.”
“Essa ali, a mãe morreu, chamava-se Donada, Agora a menina trabalha pra aqueles lá.”
“Quantos anos tem a pequena?”
“Sei lá, se vai estudar.”
Meus quatro olhos iludiram-me. Quem vem lá não era de cá, o que deveras foi metal, hoje tem pele e o osso não dá mais para enxergar.
Domingas
Donadinha virou Domingas. De tanto domingar, encontrou mãe postiça, que lhe deixou estudar, trabalho só quando crescer, presente até vai ganhar.
Mas não esquece jamais, de onde se fez, do amor daquela sem nome, que sozinha fez lhe criar.
O terreno baldio já não há, levar flores para onde, se nada mais está lá? Donada sumiu junto à terra, cimento começou a brotar, existe somente dentro dela, ali é que irá ficar.
“Donada mãezinha querida, que tanto me quis bem, de ti só trago boas lembranças, amor não é vintém.”
Seu sonho era ter casa e comida, escola para filha estudar, trabalhar como, se ninguém lhe via nas calçadas a esmolar?
Foi nascida e seus pais morreram, de pequena na rua continuou a morar, num abuso, nasceu sua filha, Donada conseguiu lhe criar, a morte chegou de repente, do nada deixou de respirar, quanto mais se vivia, mais pobre iria ficar.
Donadinha virou Domingas, a sorte lhe fez edificar, nunca esqueceu Donada, sua mãe sempre a lhe ensinar, “Que nessa vida também tem como, do nada, um dia virar. Se a vida fere a gente, também ela sabe cuidar.”
Hoje Domingas tem tudo, que a vida pode dar, também carrega no peito, as duas mães para lembrar, aquela que do ventre nasceu, Donada forte a lutar e Querência a mãe postiça, que deu-lhe a segurança que a outra não pode dar.
As duas já se foram e a crônica resolveu rimar, tão coxa quanto Donada, assim também vai terminar.
Meus quatro olhos iludiram-me, fracassei neste manejar de palavras, a rima misturou-se com a crônica, essa deixou-se levar, daqui deste canto espio alguém o conto a contar, que a dona da lanchonete é Domingas e também criou um lar, suas filhas são gêmeas, com avós para lembrar, que essa vida é dura e, às vezes, doce ela pode ficar.
Apago a luz do texto, bebo sem respirar, embaralho desmaios, do nada virou crônica, Donada era quem não podia sonhar.
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Fabio Santiago é poeta e prosador. Publicou os livros Intramurus, Versos magros (compre aqui), Mar de sombras e Cantos temporais. Instagram: @fsantiago006
Respostas de 4
Que linda essa crônica que é verso e prosa.
O texto é a vida real, uma montanha russa cinestésica . O eterno retorno de Donada, Sísifo contemporâneo. Parabéns Fábio. Aquele abraço.
Texto tocante!
O poeta Fábio Santiago faz da rima instrumento para talhar, com a arte da crônica, a nossa dura realidade.
Texto tocante! O poeta Fábio Santiago faz da rima instrumento preciso para retratar a crônica de uma dura realidade.