Autor de seis livros comenta sua produção mais recente, o híbrido Caminho das aves
Por João Lucas Dusi
Munido de uma curiosa restrição libertadora — a de produzir versos sem empregar verbos em formas finitas, não conjugados por pessoa, número, modo ou tempo —, Danilo da Costa-Cobra Leite deu o pontapé inicial em seu sexto livro: Caminho das aves, um híbrido de poesia com imagens, filosofia e quadrinhos — gênero que cativa o experiente ficcionista.
Além de comentar sua obra mais recente, o autor problematiza o mundo em que ela se inscreve e defende o risco necessário de escrever “como não convém”, num gesto malcriado e resistente contra a indiferença de um tempo saturado por expressões fugazes.

Restrição libertadora
Caminho das aves trata de liberdade, liberdade e libertação em alguns sentidos, liberdade de dizer, ser, desejar, de sentido, mas também constatando a todo momento as nossas limitações e restrições, desalento, desamparo e falta de perspectiva. Um equilíbrio delicado de otimismo e pessimismo. Comecei o programa deste livro não com essas perguntas em mente, porque não sei respondê-las sem tautologia. Sendo apenas um mero escritor, constato o fato de que escrever da maneira como faço, e como muitas escritoras e escritores fazem, é uma afirmação em si de tal liberdade e compromisso. Comecei em 2015 os primeiros 10 poemas com uma restrição autoimposta que pode soar igualmente maluca: e se eu escrever poesia sem usar as formas finitas dos verbos? Assim como todas as formas de arte possuem suas restrições, são bidimensionais, dependem da combinação de pigmentos e óleos e pincéis ou dependem das articulações do corpo e do ritmo, e se eu criasse uma restrição a mais?
Olhar de fora
Pensando nessas coisas, mas também em formas literárias com regras próprias, por exemplo o haiku, o pentâmetro iâmbico, os metros gregos e latinos, e comecei a compor os poemas sem os verbos em formas finitas, não conjugados por pessoa, número, modo e tempo. É uma restrição na sintaxe que visa a exprimir no nível micro da frase uma falta e uma dificuldade de agir e chegar a alguma conclusão que (creio) é geral. Os sujeitos, os objetos de certo modo estão presos e perdidos para sempre nos poemas, em alguns casos sequer sabemos do que o eu-lírico está falando. Então, já de cara, para este eu-lírico presente no livro, a noção de que estava de certo modo olhando de fora e brincando com o que é uma poesia está dada desde o início.
Escrita inconveniente
Acho que é preciso reivindicar a cada momento, a cada geração, nossa liberdade para nos exprimir como convém, mas também como não convém. Nesse sentido, Caminho das aves é um livro de poesias escritas de maneira inconveniente, ou pelo menos o eu-lírico está empenhado nisso. Não chegar ao leitor com algo pronto e esperado, o som da rima, o som do ritmo e a estrofe espelhada ou repisada. O livro tem ritmo e rima, claro, porque o projeto cresceu e outros poemas completamente diferentes fazem parte do “Intermezzo” e da seção “Sator” e do gibi-fotonovela ao fim.
Percepção poética
A visualidade e a materialidade do signo acústico impresso sempre foram um critério para minha escrita. Nesse sentido, como os concretistas, penso o texto poético distribuído na página como uma mancha de um desenho feito de tipos impressos. Vejamos um poema antigo como “Sator”, que inspirou uma seção do livro:
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
A tradução mais aceita é a seguinte “O semeador Arepo segura com cuidado as rodas”. Esse poema anônimo não pode ser concretista, pois antecede o movimento em muito mais de mil anos. Mas ele tem regras claras e uma forma quadrada essencial para o poema, é um palíndromo perfeito, disposto em 5 linhas de 5 letras. Como escrever poesia com tantas restrições e – por que fazê-lo?
Relação problemática
A relação para mim entre linguagem visual e escrita é, por outro lado, ambígua e problemática, truncada, embora portadora de boas ciladas. A cultura contemporânea da imagem é muito poderosa, nesse sentido, enquanto a cultura da palavra menos; aquela coloniza, hipersacode, ultrarrecompensa e depois embota e de certo modo arregaça, ou rasga, a sensibilidade. A imagem, no entanto, não precisa fazer nada disso intrinsecamente. A pausa, a elipse, o silêncio, o deslocamento (um hipérbato ou uma metáfora) recursos típicos de um bom verso ou de uma boa fotografia podem ser úteis nisso, na ressensibilização da imagem. A palavra pode trazer frescor para a cultura da imagem e a imagem pode trazer equilíbrio à página e multiplicar o sentido de uma forma puramente literária.
Obsessão
Uma leitura que me influenciou ultimamente é a de Alastair Fowler e o Kinds of Literature, onde ele discute muitos temas, dentre os quais um que me interessa muito sobre a apropriação que um autor faz a cada obra de toda a história pregressa. Ele trata de como certos autores desafiam as barreiras dos gêneros literários; isso, para mim, é uma obsessão literária, a de absorver referências e formas não-literárias dentro de um texto de ficção.
Sentidos ampliados
Acho que existe muito conflito entre a imagem e a cultura da imagem como existe hoje, super reprodutível, supersensível, que quer engajar tudo da sensibilidade por meio da imagem, acessível e gozável, e a cultura, mais antiga claramente, do signo linguístico, da imagem acústica, que é lenta, silenciosa, quase artesanal em escala (se excluirmos o ChatGPT da conversa), mas que tem outros problemas de elitismo e acessibilidade. Era impossível, no século passado, imprimirmos tantos livros e divulgarmos tantos trabalhos no país. Os papéis eram diferentes, os meios e as técnicas também. Existe destruição e erosão mútua, coisas que a imagem não pode domar na escrita (mencionei algumas antes) e vice-versa, mas dentro desse campo minado também há oportunidades para colaborar. Acredito e tento fazer com que a imagem se funda e amplifique os sentidos da obra, por isso convido ilustradores e artistas para reinterpretar o escrito, tenho feito assim desde minha primeira obra. O que enfatiza ainda uma coisa importante para mim e às vezes esquecida: um livro é feito por muitas pessoas, é uma obra coletiva em que o texto do Danilo da Costa-Cobra Leite ocupa 90% do espaço, mas depende 100% de outras pessoas.
Enquanto objeto
O objeto-livro é complexo e porta características sobre as quais não pensamos ao ler em geral: a qualidade da folha impressa, as cores, as margens e a mancha, a capa, as fontes etc. Cada tipo de texto precisa de respiros e manchas diferentes. Misturar imagem e texto nos obriga, como escritores e leitores, a nos tornarmos mais conscientes das restrições (e da liberdade) que o objeto-livro oferece.
Linguagens emaranhadas
Uma sidequest minha é um projeto pessoal de fundar um Museu de Arte mostrando como uma linguagem artística penetra, traduz, interpreta as demais ao longo da história. Como o balé (ou pierrôs e palhaços) influencia a cerâmica e prataria doméstica com uma enxurrada de bibelôs de artigos decorativos que algumas pessoas têm em casa. Como a música contemporânea muda a dicção da poesia? Como o concretismo influencia as artes plásticas? São formas irredutíveis umas às outras, porém as possibilidades de intertradução, de conjugação e interpretação são muitas.
Quadrinhos
Às vezes, penso em coisas ousadas: creio que algumas obras de quadrinho, para ficarmos em uma arte só, deveriam ser leitura obrigatória de vestibular e tornados acessíveis – Manual do Minotauro, de Laerte, ou O Incal, de Moebius e Jodorowsky, e Akira, de Katsuhiro Otomo, por exemplo. É uma viagem, mas o quadrinho para mim foi a porta de entrada para minha literacidade. Fui letrado com Mafalda, Turma da Mônica, X-Men e Asterix.
Poesia versus tecnologia
Acho que seria ingênuo dizer que um livro de poesia pode competir com a tecnologia. Este é meu sexto livro e, pelo que observo, nem mesmo autores muito famosos de nossa geração conseguem engajar o público, por meio de suas atitudes ou de suas obras, com a mesma energia e sofreguidão que um bom episódio de série ou de novela, ou um Big Brother. Aparentemente ser premiado ou cancelado é a única chance de uma escritora ou escritor se tornar um trending topic durante mais de um dia. Se quiséssemos competir com a tecnologia, deixaríamos de escrever. O paradoxal, para mim, é que todos não deixamos de escrever, na esperança de que sejamos lidos talvez, porém – na minha opinião o que conta mesmo – é a esperança de que a cultura escrita, tão rica e com muito potencial, se preserve e receba novas vozes. Comparada à indústria do cinema ou do videogame, a literatura é muito mais acessível e democrática. Precisamos dela. De todo modo, se a batalha geral pelo sucesso for posta em termos de engajamento narcísico, gozabilidade, ou pior, reprodução, likes, compartilhamento, ou seja, se quisermos pensar como os algoritmos “pensam”, então estamos perdidos. Um livro de poesias não pode competir e não deve competir com a tecnologia, ele não faz o que um smartphone faz. Ainda bem que ainda podemos dizer coisas inconvenientes de uma forma inconveniente, antes que “morramos todos os pássaros”. Acho que Caminho das aves é um pouco esta busca: o que ainda é um livro de poesias e o que ele pode ser antes de se dissolver completamente na indiferença e no ruído que ameaça consumir (junto com o capitalismo) a humanidade?
Diferentes formas
Uma forma nova por si só não tem o poder de destruir uma antiga; se quiséssemos, por exemplo, recuperar as radionovelas, as cantigas de maldizer ou o cinema mudo, ainda haveria muitas histórias a se contar e as pessoas ainda se divertiriam muito com elas. O que tem o poder de destruir uma forma antiga é a indiferença. Eles podem se interadaptar e se enriquecer, sem que um se reduza ao outro, creio.
Loucura plena
Acredito muito na ideia kantiana e spinosana de que a liberdade é a forma mais elevada de compromisso humano consigo mesmo, com a própria existência e com a autonomia da vontade. É desafiador escrever poesia e literatura num tempo regado, encharcado de dopamina. Por que raios alguém decide contar e escandir sílabas na vida real, rir de uma boa alegoria ou de um hipérbato? É possível ser mais maluco que isso? Por que raios alguém demora anos, décadas para concluir trinta, trezentas páginas de texto, lendo e relendo um enredo que, na melhor das hipóteses, fará o leitor pensar na história da literatura, se é que isso lhe interessa?
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Danilo da Costa-Cobra Leite nasceu na porção Ocidental da Cidade de São Paulo do Rio Tamanduateí. É advogado, sociólogo e doutor em Letras Clássicas. Lançou Nhe’enga a more quixotesco (2020), Paralithomaquia e outros poemas (Patuá, 2015), Epyka, 24 horas-haiku (Ed. Mentes Abertas, 2021 e 2022) e Nenhuma chuva em vão: quebra-cabeça (Ed. Caravana, 2021). É pai do Ernesto Piatã.
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