Daniel Osiecki | Curitiba – PR
O que um escritor latino-americano do século XX que só publicou dois livros de ficção e o vocalista suicida de uma banda inglesa do pós-punk têm em comum? Aparentemente nada, mas se olharmos com mais atenção, há mais semelhanças do que imaginamos. Juan Rulfo e Ian Curtis; Pedro Páramo e Joy Division. Para tentar entender essa relação (esquisitíssima, eu sei!), façamos um breve apanhado geral.
Rulfo, escritor mexicano que foi um dos grandes nomes do Boom da literatura latino-americana, publicou apenas Pedro Páramo e Chão em chamas (romance e contos, respectivamente) em vida. A relevância de Rulfo é tão grande no cenário literário do século XX, que o próprio Garcia Marquez já afirmou que Cem anos de solidão só existiu por causa de Pedro Páramo.
No romance (publicado em 1955) nos deparamos com algo tão relevante quanto as personagens: o espaço. A cidade de Comala, que é para onde Juan Preciado viaja à procura de Pedro Páramo, seu pai, é uma espécie de limbo onde vultos, fantasmas e espectros andam um tanto sem rumo, à deriva. Preciado, aos poucos, ainda um tanto sem entender direito, descobre que cada personagem que encontra tem alguma ligação com seu pai. Pedro Páramo é um exemplo clássico do que Eduardo Lourenço chamou de “narrativa atmosférica”, técnica em que o espaço tem tanta relevância na ação quanto os personagens.
Longe do México, na fria e escura Manchester, um ano depois de Pedro Páramo ser publicado (embora Ian tenha passado parte de sua vida em Macclesfield, pequena cidade no noroeste da Inglaterra), nasce um menino que mudaria o cenário musical inglês do final da década de 70. Ian Kevin Curtis foi um jovem retraído que se interessava por música e poesia. Foi em um show do Sex Pistols, em 1976, que Ian conhece Peter Hook e Bernard Sumner. Por algum tempo tocam com o nome de Warsaw, banda que logo foi rebatizada de Joy Division (péssima referência que nem abordarei aqui). E qual a ligação entre Rulfo e Ian Curtis?
No romance Love will tear us apart (2022, Uboro), do carioca Fábio Fernandes (autor de Dias da Peste, Back in
the USSR, Under pressure e outros) temos uma espécie de revisionismo histórico scify-pós-punk. Ian Curtis, através de sessões de hipnose comandadas pelo guitarrista Bernard Sumner, passa a transitar por universos paralelos oníricos e o leitor descobre que ele é o pivô de uma conspiração pelo domínio do mundo dos sonhos. Temos aqui oneironautas, esses viajantes do tempo através de realidades distintas, soldados napoleônicos, rufiões e uma gama de personagens batante variada.
Vale ressaltar que Fábio Fernandes já entrega no início do livro parte do desfecho, mesmo porque todos que acompanham o Joy Division sabem do fim trágico de Ian Curtis; e aqui reside um dos vários acertos do romance, as diversas camadas narrativas que vão se sobrepondo conforme as viagens oníricas de Curtis se sucedem.
Assim como Comala é fundamental em Pedro Páramo, o cemitério de Macclesfield é essencial para toda a ação de Love will tear us apart. Se utilizando de narrativa in media res, Fábio insere aos poucos informações sobre o que de fato Curtis terá que fazer a cada inserção em uma realidade (ou sonho?) diferente que desbrava. Interessantes são os lapsos de tempo em cada sonho/delírio de Curtis, que geralmente acontecem em suas crises de epilepsia. São nesses momentos em que oneironautas e Mad Jack lutam pelo domínio de Ian.
Não sabemos ao certo se Ian Curtis de fato tem uma missão, se tudo aquilo que acontece em todo o romance é um delirium tremens; se ele, tal qual Juan Preciado, está morto. Esse é um dos acertos de Love…, deixar lacunas, espaços, vácuos para o leitor descobrir (ou não descobrir) por conta própria.
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O AUTOR
Fábio Fernandes é jornalista e escritor. Professor nos cursos de Jornalismo e Jogos Digitais da PUC-SP, traduziu dezenas de livros, entre os quais Laranja Mecânica e Belas Maldições. Como escritor, publicou entre outros, Os Dias da Peste, De A a Z: Dicas para Escritores e BACK IN THE USSR; as coletâneas de contos Interface com o vampiro e 16. Lançou no Reino Unido a coletânea de contos Love: an Archaeology e a novela steampunk Under Pressure.
O RESENHISTA
Daniel Osiecki nasceu em Curitiba (PR), em 1983. Publicou os livros Atmosfera das grutas (2023), Veste-me em teu labirinto (2021), 27 episódios diante do espelho (2021), Fora de ordem (2021), Trilogia amarga (2019), Morre como em um vórtice de sombra (2019), fellis (2018), Sob o signo da noite (2016) e Abismo (2009).
Uma resposta
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