Julho de 2020 – Parte 3 – crônica de Bruno Nogueira

por Bruno Nogueira

A enfermeira entra. Como sempre, dinâmica, direta, ao ponto. A máscara já vestia, retira um par de luvas de uma caixa de descartáveis e atravessa rápida a sala. Pela primeira vez, Damiano a segue: supervisiona o que acontece em sua casa. Ainda assim, vira a cara quando a porta do quarto é aberta: insuportável cheiro de velho e urina, mas a enfermeira é acostumada e destra. Em segundos, borrifa bom-ar no quarto e pega os anéis que esquecia sempre de um criado, retira a roupa de cama do colchão e ajeita numa trouxa.

Ela pergunta se pode levar remédios fraldas e andador para doação, e Damiano deixa, quase agradece. Quase pede que leve a roupa de cama, mas tem vergonha. Ela abre a geladeira.

            A insulina também?

            Ela olha, curiosa.

            O senhor vai usar?

            Damiano faz que não. Não quer acusá-la. Nem saberia do quê, e não gosta de discussão. Ela pensa um pouco, acha uma caixa de papelão, coloca nela uma sacola com gelo, as caixas de insulina e o frasquinho solto.

            Ele pegava do governo. No postinho a gente acha quem precisa.

            Damiano faz que sim, mas não gosta, acha suspeito que ela tenha tomado a iniciativa de explicar. Ela joga fora as luvas no lixo da cozinha, que abre com o pé, e olha para Damiano com a expressão de quem só agora percebe algo óbvio.

            O senhor tem máscara.

            Opa!, ele responde, tirando do bolso a branca descartável suja que não sabe há quanto tempo tem. A enfermeira olha como se Damiano segurasse um bicho morto.

            Vou deixar uma limpinha pro Sr.

            Tira da bolsa uma máscara de pano, também branca, e deixa em cima da pia. No último segundo diz Ah!, e se lembra de pegar da bolsa a chave da casa, que deixa ao lado da máscara. Seu olhar contorna as paredes com alguma nostalgia.

            É. Foram muitos meses né.

Que descanse em paz. Deus sabe o que sofreu.

            Damiano acha exagero, mas responde:

Amém.

            Nisso a enfermeira já voltou ao dinamismo natural. Damiano pensa em oferecer ajuda, mas num segundo ela já tem numa das mãos o andador e uma sacola com os remédios, na outra a caixa com insulina, e leva tudo com tranquilidade, passando pela sala sem que o andador bata nos móveis. Damiano abre o portão. Olha pensativo enquanto ela coloca o andador no chão da calçada, pega do carro álcool e pano e passa com cuidado antes de colocá-lo no banco de trás de um carro pequeno, quadrado e vermelho. Vai embora com um aceno a que Damiano responde com timidez.

            Damiano percebe, com surpresa, que a cerveja ainda está fria. A enfermeira mal ficou cinco minutos. Vai ao banheiro, que desde que o velho voltou às fraldas era usado só por Damiano e pela enfermeira, e depois de dias fechado cheira a tumba vazia. O rosto inchado, a roupa úmida e os olhos injetados que Damiano vê no lhe explicam o repentino e estranho carinho da enfermeira. Ele ri, e joga água no rosto de novo e de novo.

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