Julho de 2020 – Última Parte – crônica de Bruno Nogueira

    Cássio olha pro silêncio de Damiano por uns segundos, esperando uma palavra de concordância como um cachorro espera um afago, mas o afago não vem e ele decide ir ver o que a Clarinha está fazendo.

            Juro que vou arrumar uma coleira viu. Putinha assim você precisa de coleira e segurar perto até aprender, se não ela te põe é chifre.

            E segundos depois entra pela mesma porta a Paulinha, a irritação visível apesar da máscara, segurando a caneca de metal cuja correia enorme dança em cima do biquini e morre na asa da caneca de metal que ela segura canhota.

            Juro que vou matar o Cássio.

            Damiano dá meio sorriso sem graça.

            Eu trouxe a porra dessa caneca pra não ficar bebendo do copo dos outros e toda hora o filho da puta toma ela da minha mão e dá uma golada.

            Damiano observa a correia que se agita entre os seios de Paulinha conforme ela ensaboa e enxágua a caneca.

            Paulinha, você já trabalhou de doméstica né?

            Trabalho ainda, graças a Deus. Por quê?

            Faz diária?

            Olhos risonhos por cima da máscara.

            Resolveu dar jeito no chiqueiro, Damiano?

            Então, eu tô de casa nova Paulinha.

            Ah, mudou é?

            Não, mas vou mudar logo.

            Época estranha pra mudar.

            Sair do aluguel a gente sai correndo, né.

            Mas gente, casa própria, que chique, parabéns!

O sorriso de Damiano, como tanta expressão que tem, é pequeno pro sentimento.

            Mas é, precisava de alguém pra ajeitar.

            Uai, sem problema. Eu passo toda tarde numa patroa aí, Eu pessoalmente não entendo essas pessoas, viu Paula. Eu faço um esforço pra ficar em casa, você é testemunha, não saio pra nada, e você sabe o quanto eu gosto de sair, comprar minhas coisas, e vê se eu fiz isso alguma vez esses dias? Não. Tenho consciência. Desde que começou a pandemia eu só peço entrega, quando preciso de alguma coisa, e só mando você buscar quando necessário (e não gosto de mandar você, claro, não quero que você fique doente também, mas às vezes é difícil). O Ricardo também, desde que começou está sempre aqui, fazendo as reuniões e as palestras em viodeoconferência, agoniado agoniado (você sabe como ele gosta de ir pro escritório e conversar em pessoa, do micromanagement, faz falta pra ele, acho até que tem trabalhado mais; pelo menos mais estressado vem ficando). Anda dormindo mal, vejo ele andando ansioso pela casa, encomendou até uns equipamentos pra exercitar em casa, e se ele não fosse levar a mal eu tinha sugerido um saco de pancada, pra ele se livrar um pouco do estresse, mas isso não vem ao caso. Esse povo que não fica em casa, que enche os ônibus, que fica na rua, esse é o problema verdadeiro, sabe? Parece que não sabem. Assim não acaba nunca a pandemia e a gente vai ficar preso por mais tempo e vai morrer mais gente e mas a gente arruma um tempinho de manhã, ou se for coisa de dia inteiro eu apareço no fim de semana. Tem meu zap?

            Damiano faz que sim.

            Me manda uma mensagem e a gente combina direitinho, pode ser?

            Enquanto fala, ela busca na geladeira uma lata e enche sua caneca e o copo de Damiano.

            Pode.

            Combinado então, meu bem. Agora deixa eu voltar e aproveitar um pouco mais desse sol antes que acabe que o frio tá começando e não é todo dia mais.

           Minha sorte é ter patroa medrosa. Vida inteira usei ônibus metrô ônibus pra ir pro trabalho, e de repente resolveu pagar uber, me deu máscara pra usar no trabalho e outra pra casa, cada uma com reserva pra quando precisar lavar ou ficar mais de não sei quantas horas. As duas de casa eu dei pra mãe, que tem setenta e poucos e não convém arriscar. Eu penso nela, penso no emprego, que se eu pegar uma gripe que seja, certeza, é rua, e do jeito que eles dois são, no trampo não vou pegar — só se de algum parente voltando do exterior.

            O olhar de Damiano segue Paulinha, que se afasta rumo ao quintal, mas não vê. Está distraído. Esqueceu de perguntar preço. Não devia ter pedido à Paulinha. Ela vai cobrar caro, ele vai dizer sim por vergonha, e vai se convencer de que aceitou pagar só pra ter o conforto de ser uma conhecida em casa. Quem sabe um dia o sonho de pagar à Paulinha mais que os patrões e ter ela sempre ali, cuidando pra ele das tarefas domésticas?

            Damiano esvazia o copo, pega outra lata, e sai. Olha outra vez a geladeira cheia, mas dessa vez sorri, pensando que de agora em diante vai poder encher a sua também. Lá fora, encontra Cássio e Alberto encarando a bunda da Paulinha, que agora está de pé, conversando com a Clarinha perto da piscina. A Rute, sentada ao lado, não muda em nada o comportamento dos dois.

Alberto se volta.

E você não usa máscara, Damiano? Tem que usar!

Olha quem fala, ó, Alberto!

Não, Cássio, mas você não entende a nossa realidade minha e da Rute, atendendo aquele povo todo no mercado e falando com fornecedor e cliente e funcionário…

Por isso que a Clarinha eu também não falo nada, que pegar ônibus, ficar ali no caixa, é complicado cara. Eu ando te chateando, né, Paula? Falando sem parar.

Quê isso, sra.

Ah, não precisa negar, eu sei que sou chata. A coisa é que anda tão difícil conversar com as pessoas. Você é meu único contato com o mundo lá fora. Eu converso com umas amigas online, de vez em quando, mas todo mundo presa, então nunca tem novidade, sabe? Cansa. E você tem uma vida diferente da minha, você anda por aí, quase fico com inveja — aliás, não, desculpa. Não sei. Não é bem inveja que eu queria dizer. Se eu pudesse te dava a dispensa, claro, mas não dou conta de jeito nenhum de arrumar a casa. Quando você ficou doente aquela semana e eu tentei o Ricardo só fazia reclamar que eu não arrumava direito, e além de me cansar eu ficava estressada, sabe, e eu já detesto tanto arrumar, e tentava fazer tudo tão certinho, pra ouvir só reclamação quando ele chegava. Você que é boa no que faz. Sem você eu tava ferrada. Juro que se ficasse doente eu te arranjava uma daquelas roupas de astronauta pra você poder continuar trabalhando — hahahaha, brincadeira, viu Paula?

Que mané realidade Alberto, se você acreditasse mesmo não fazia churrasco ou então ficava sofrendo no sol que nem a Paulinha.

Alberto acende um cigarro.

Não, isso é verdade, mas não é que eu não acredito. Eu não gosto é de ficar com esse negócio aí, essa máscara tampando a cara esquentando o rosto da gente. É ruim demais, dou conta não. Devia mas não quero.

           E a coisa, Cássio, é que têm acreditares e acreditares. Eu não acho que o Damiano tá doente, de exemplo, essa tossezinha seca aí dele não vai matar ninguém, então uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Não, é, aí sim, tá certo, eu mesmo não vou sair por aí beijando doente de língua, mas moral pra falar pro Damiano botar máscara você não tem.

            Damiano e Alberto se olham.

Toma no seu cú, Cássio, você é quem tá pouco se lixando e fica por aí de fake news.

Fake news é o caralho.

E o Damiano, calado, toma sua cerveja. Não adianta falar nada pra esses dois. Não que ele tentasse. Sempre acontecia assim. Alberto e Cássio começavam a discutir, levantando a voz ao quase grito que a bem da verdade não é muito mais que a voz típica do Cássio, até a Rute perder a paciência e Ou!, vocês dois!, pode parar com essa porra agora, tem visita em casa e eu não quero saber de gritaria não! e Damiano, mesmo quieto, sentia-se uma criança que leva bronca da mãe, bebendo pensativo sua cerveja como se estivesse mergulhado nela, e o som dos gritos chegasse como chegaria a alguém no fundo da piscina.

Dois meses atrás, o mesmo: Pagode estourando, Paulinha já de máscara, Alberto e Cássio aos gritos, Damiano bebendo e ignorando a conversa. Aos poucos, um ruído se levantou. Um ruído estranho, um barulho agudo que foi subindo, aumentando, até chegar num volume que a música alta e a discussão transformavam em discreto, mas que num lugar silencioso estaria longe disso. No seu ápice era agudo, incômodo, mas Damiano era o único que ouvia. Paulinha conversava com a Rute na sala, Clarinha não estava, os outros dois entretidos na discussão que gritavam, Damiano olhou na direção do ruído que lembrava uma furadeira ou broca mas não parecia haver nada lá. Até que se abriu no chão do quintal um buraco, e saiu dele uma coisa que por pouco não perfura a piscina. Damiano se arregala. Bicho? Não, acha que não, alguma coisa metálica, pouco maior que um louva-a-deus, andando sobre patas mas movimentando o tronco horizontal de uns 20 centímetros em curvas feito uma serpente. E depois de uns segundos observando o redor, a coisa se apoia nas patas traseiras e começa a inflar. Lentamente, o bicho estranho infla, infla, assume as proporções de um balão, um balão estranho e metálico. Damiano se movimenta da esquerda pra direita pra continuar vendo a criatura estranha apesar de o Cássio ter se levantado e começado a se mexer e gesticular na discussão com o Alberto, tampando sua visão. O bicho sobe, desafiando a gravidade, seus detalhes se tornando aos poucos indiscerníveis e seu corpo se convertendo numa espécie de bola balão prateado qualquer no ar poluído da cidade grande, ainda que resista mais ao sabor do vento que um balão regular resistiria. Quando os olhos de Damiano descem, se cruzam com os do menino, do Davi, o filho de 12 anos de Alberto, naquele sob a guarda do pai. Só agora Damiano percebe o rosto do menino acima da borda da piscina. Tinha visto tudo. Travou o olhar assustado ou talvez surpreso nos olhos de Damiano, e de repente gritou Pai!, e saiu o mais rápido da piscina e correu até Alberto gritando Pai!, Pai!, Olha Pai! puxando o braço dele, mas o Alberto, de pé, no meio da discussão, não olha na direção dele, grita só um Cala A Boca e empurra o menino, que dá alguns passos pra trás em busca de equilíbrio e cai sentado no chão de cimento, e olha pra Damiano com um olhar quase desesperado que Damiano responde apertando os lábios e deixando o rosto assumir uma expressão que significa: Vai se acostumando, moleque.

Minha doença mais séria era a idade.

Pulmão, sempre de ferro. Nunca vi uma coisa daquelas.

Normalmente quando você respira o ar quer sair de você.

Ele quer entrar e ele quer sair.

Ele tem um caminho pra seguir, e segue.

Você só abre o espaço,

deixa ele entrar,

impulsiona a saída.

Mas de repente não abria mais. Como se tivessem esmagado seu pulmão, como se te afogassem no seco, na cama, como se precisasse lutar com todas as forças pra abrir, a mão invisível apertando forte e restringindo cada movimento. E a mão foi apertando, apertando, antes de ser entubado eu já não conseguia falar porque a mão levou minha voz, eu não conseguia ar suficiente pra dizer palavra, e com o tubo, então, impossível, mas era melhor, era melhor aquele cano descendo pela minha garganta e cortando e ardendo e machucando do que a opção, do que o não respirar. Na falta de medicação, amarrado pra não arrancar o tubo, eu detestava a dor, mas detestava também o sufocamento que a dor ajudava a afastar. Mas devagar ele voltou. O tubo foi cedendo, o ar faltava, e agradeci a Deus que chegaram os remédios pra me desacordar. E daí, tive só pesadelos, pesadelos com o Damiano. Sonhava com meu peito aberto e ele de pé em cima de mim, um pé no meu peito, um no meu pescoço, e eu tentava respirar e não conseguia, e gritava e pedia pra ele sair e pedia perdão mas ele não ouvia, ou então ignorava, e eu via que ele era indiferente e a indiferença era pior do que o ódio, e eu não aguentava mais e de repente chegava aquele namorado que ele teve na adolescência e pisava também em mim, e os dois se beijavam e eu me sentia acordar por um segundo e nenhum dos dois estava mais e o meu peito fechado mas o peso ainda estava lá, e a cada dia eu mais e mais inconsciente e o peso lá e o peso lá e o ar não vinha o pulmão não deixava e essa mão esse aperto esse peso foi a última coisa que senti.

Lista de pessoas mortas graças a Damiano

 

 

– Alberto (beijo)

– Rute (através de Alberto)

– A mãe de Cássio (Alberto → Clara → Cássio → Mãe de Cássio)

– O pai (tosse)

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