Somente com essa mistura de universos, Glauco já estaria posicionado na contramão da caretice que rodeia a dita forma fixa. Mas o autor paulista escancara que o soneto não é a camisinha da poesia e que o tema “low” — escatologia, homossexualidade, fetiche etc. — sempre serviu bem à literatura de todos os tempos e estirpes, demonstrando o engodo que pode ser a mera demonstração de ginástica formal.
Dialogando com o que há de mais vivo na tradição, os sonetos investem contra o mau uso da forma, servindo como antídoto contra todo tipo de conservadorismo. Em Glauco respiram e conspiram Gregório de Mattos e
Bocage — para citar apenas dois de uma vasta linhagem de rebeldes.
Por isso, uma das importâncias fundamentais […] é a possibilidade de se perguntar o quanto as formas poéticas são também políticas. Por trás de pergunta tão simples, pode-se chegar a respostas que envolvem a
própria criação poética ou, mais especificamente, a sua liberdade de linguagem. […] Não restam dúvidas que a fama de forma rígida, facilmente atribuída ao soneto, pode ser usada como bandeira para cruzadas conservadoras, chamando para si a tarefa de elevar a “baixa” produção de uma época. Contudo, dependendo da visão de mundo do autor, de seu comprometimento com a inserção da poesia no seu tempo, etc., a mesma fama pode contribuir para um efeito contrário, de extrema consciência política, estética e comportamental. É o caso do poeta paulista Glauco Mattoso.
Ricardo Corona, em 2001, no jornal GAZETA DO POVO
Inverno 2020
ISBN: 978-65-86526-22-6
112 pág.
R$ 44,70 R$ 31,29
Glauco Mattoso
AUCTOR E OBRA
Glauco Mattoso, academicamente estudado como um caso “queer” de poeta
satyrico e fescennino, é auctor de mais de seis mil sonnettos e mais de
sessenta livros de poesia, alem de ficção e ensaio, de um tractado de
versificação e de um diccionario orthographico, este systematizando sua
reacção esthetica às reformas cacophoneticas soffridas pelo portuguez
escripto. Paulistano de 1951, perdeu a visão nos annos 1990 devido a um
glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua
producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador
fallante.
CEM NOVIDADES, collectanea de ineditos com a qual o auctor retoma uma producção que fructificou entre 1999 e 2012, appresenta o sonnetto como officina para experiencias de forma e contehudo, as quaes o lyrismo mattosiano se mantem monochordico e polythematico, polemico e problematico, tal como figura na analyse dos cathedraticos. Aqui os sonnettos são desconstruidos e reestrophados, em authentico laboratorio do decasyllabo a serviço da invenção poetica.
Foto: Akira Nishimura