SENDAS
Se tudo que é sólido desmancha no ar (Marx & Engels via Marshall Berman), se vivemos em tempos de modernidade líquida (Bauman), se Deus está morto (Nietzsche) e portanto tudo é possível (Dostoiévski), ou seja, se temos muitas dúvidas e nenhuma certeza, a poesia já é líquida há muito tempo, desde os tempos que abandonou as pretensões do absoluto e a totalidade de épico. Mas é líquida num outro sentido: num sentido, digamos, contra-hegemônico, contracultural. A poesia não vai na onda. Ao contrário: a poesia é a pororoca que desafia o fluxo milenar dos rios. É neste sentido que devemos entender estes Fluídos poéticos, estreia poética, porém madura, de Beatriz Ale.
A poesia de Beatriz é fluída, sem medo de ser lírica, no entanto sem deixar de colocar uma ou outra pedra no caminho do leitor. Poesia de mulher, mas de mulher-poeta, não poetisa, ela parte de um lugar muito determinado: “A mulher escreve o mundo pela janela da sua cozinha. / Sua obra é um feixe de cheiros que desliza pelas escadas do seu prédio. / Ela também escreve entre o sono e o choro das suas crianças. / Seus versos são suaves como cantigas de ninar.” Mas nem só de ternura é feita essa poesia: também de dureza e denúncia se reveste o verbo de Beatriz, como no belo poema “Zumbi”, onde não se sabe se o personagem que batiza o poema é o célebre Zumbi dos Palmares ou um dos muitos Zumbis de nossas periferias: “Lembro de ti aos clarões / Sorriso aberto em trovoadas / Pessoas entrando sem bater / Abrigando-se em tuas pupilas / Úmidas de compaixão (…) Dia desses espiei-te no caixão / De canto de olho / Nunca vi gente mais morta. // Feito animal empalhado / boca arreganhada, / dois caninos de fora / Parecia bicho morto-vivo / Troféu de parede.”
Assim, entre o lirismo e uma faca só lâmina, flui a poesia de Beatriz Ale, esta curitibana por adoção, nascida em Mato Grosso do Sul e criada à beira do rio Paraguai. E esta poesia é como o rio de Heráclito, convidando a todas e todos e se banharem em suas águas sem fim e sem começo.
Otto Leopoldo Winck
Outono 2020
ISBN: 978-65-80103-89-8
144 pág.
R$ 49,70 R$ 34,79
Beatriz Ale
Beatriz Ale é pedagoga pela UFMS, mestre em educação pela UFPR e seu primeiro livro publicado foi na área da Psicopedagogia. Casada com Luiz Carlos Ale, mãe de Rafael e Anne Lise, seguiu carreira no magistério. Matogrossense do Sul, nasceu em junho de 1961, filha primogênita do seresteiro paraguaio Carmelo Fernando Filártiga e da cantora do Coral das filhas de Maria da Igreja Católica, Olímpia Sandoval Filártiga . Aprendeu a ler antes de ir à escola instruída pelo pai, que também a iniciou no mundo da poesia e do lirismo, ensinando-lhe a declamar pequenos versos em guarani. Desde os primeiros anos de escola tomou gosto pelo teatro, participando de peças infantis. Nos anos 70 mergulhou nos clássicos da biblioteca da casa dos seus tios com quem viveu dos 9 ao 15 anos de idade e de quem recebeu apoio e estímulo para a vida intelectual. Nessa mesma época, fez parte de um grupo de teatro amador da sua cidade, atuando como atriz principal de várias peças de comédias. Quando adolescente, tomou gosto pela poesia romântica, escrevendo pequenas cartas de amor aos namorados das amigas. Desde então, o amor e a paixão se tornaram objetos e objetivos da sua escrita poética.