Penso nos riscos que uma obra estabelece para si ao apresentar, como título, uma marca temporal tão complexa quanto se tivera sido nomeada como “hoje” ou “amanhã”. O ontem, como uma instância resistente ao desmonte, não se ajusta totalmente à categoria de passado remoto, memorial; porém, é a fração mais imediata do cronos a se distinguir do agora, do presente instantâneo. Um momento recente, talvez ainda com frescor de novo que, no entanto, após outras 24 horas, será amalgamado pelo transcorrer do tempo de tal modo que nem como “ontem” poderá ser mais chamado. É nesse tempo-lugar, nesse ambidestro condicionante da experiência que o poeta se posiciona: no (in)exato e primordial instante no qual o hoje se liquida e o passado institui a sua vingança sobre os indivíduos. Ao definir esse referencial para os poemas que o compõem, Ontem acaba por elaborar também, ainda que por contraponto, alguma concepção de presente do qual ele parte – não necessariamente se distanciando, mas reverberando forças que o caracterizarão como um período, um intervalo se irrompendo na História: violência, medo, mediocridade, formas subjetivas de fracasso. Forças essas que resvalam no próprio exercício poético, cujos catálogos, cadastros, arquivos, manuais e coleções passam a ser observados com desconfiança. Qual o saldo desses riscos? A máquina do mundo, embora emperrada, se move de algum modo, e o benjaminiano Anjo da História demonstra, com alguma ironia, não precisar mais voar de costas: até os calendários datam a linguagem das ruínas, monumento sobre o qual o ontem se assenta.
Berenice Hallais França
Verão 2019/2020
ISBN: 978-65-80103-80-5
129 pág.
R$ 44,70 R$ 31,29