por Julia Raiz
Em 2015, num evento na UFPR, assisti à palestra de um tradutor e escritor conhecido. Ele fez uma apresentação sobre a escrita de jovens poetas que propõe novas quebras de verso, como é o caso da Alice Sant’Anna, de quem eu tinha lido Rabo de baleia (Cosac Naify). No final da palestra, quando perguntado sobre a publicação, o palestrante disse algo como: “Sou poeta e não posso me preocupar com publicação”. Certo, ele tinha chegado num momento da carreira em que dispunha de um canal aberto com as maiores editoras do país, é um lugar diferente. Entendi.
Mesmo assim, o comentário continuou na minha cabeça. Eu, uma escritora jovem com um livro publicado só em 2017. Eu precisava (e preciso) pensar sobre publicação. Pensar sobre literatura é, pra mim e pra um monte de gente por aí, pensar em publicação. Estou tentando elaborar nos últimos anos a nossa relação (de jovens escritoras e escritores) com a questão, e este texto é um começo de resposta ao que tenho escutado desde 2015.
Em primeiro lugar, quero pensar a pessoa que escreve como uma pessoa que trabalha. Uma trabalhadora da escrita. Quando parto desse ponto, preciso consequentemente pensar na rede de relações trabalhistas que envolvem escrever, ser editada(o), publicada(o) e lida(o). Eu preciso me pensar como uma trabalhadora que inicia seu processo de profissionalização. Quando terminei diário: a mulher e o cavalo (contravento editorial), fiz uma lista de editoras que poderiam se interessar pelo livro, escrevi alguns e-mails sem resposta, perguntei a alguns colegas como foram as suas experiências e percebi algumas constantes: não puderam participar de decisões sobre o projeto gráfico, só viram o livro um pouco antes do lançamento, tinham leitoras/es interessadas/os mas não exemplares pra vender, tiveram problemas com o editor (na maioria esmagadora das vezes um editor homem mesmo). Parecia e é um caminho difícil, principalmente para as/os estreantes.
Nesse processo de submeter meu livro a alguém que tivesse interesse em dedicar tempo e dinheiro para publicá-lo, conheci um pouco mais sobre o universo das pequenas editoras. E universo me parece a palavra certa por conta da ampla variedade de acordos que um(a) jovem escritor(a) pode estabelecer com uma editora pequena. A depender dos objetivos de ambas as partes, dos custos e lucros, dos projetos estéticos compartilhados ou não. São contratos bem flexíveis os formados nesse contexto que envolve negociações demoradas, troca de favores e, com sorte, pontos de encontro.
A/o trabalhador(a) da escrita não pode se dar ao luxo de não pensar as relações nas quais está envolvida no momento da publicação. Como se dá a divisão de lucros entre as partes (temos no mínimo editora, escritor(a) e ilustrador(a))? E a questão dos direitos autorais? Como se dará a distribuição dos livros?
Muito dificilmente a/o escritor(a) iniciante terá oportunidade de discutir essas questões quando negociando com uma grande editora, mas e com uma menor, da cidade onde ela está? Na qual trabalham muitas vezes são pessoas conhecidas? Me parece que a situação toma outro rumo quando é o caso. Tratando com uma pequena editora, a proximidade pode (e deveria) ser maior e, consequentemente, tem-se maior voz do/a trabalhador(a) da escrita no processo de publicação do seu livro. Mais tempo, mais conversa, maior consciência de todas as etapas que envolvem um livro chegar às mãos de quem vai lê-lo. O/a escritor(a) não pode mais estar restrito/a apenas à produção da escrita, é possível se envolver e relacionar-se de maneira mais aproximada dos(as) outros(as) trabalhadores(as), que editam, revisam, diagramam, ilustram, traduzem, criticam. Aproximar essas/es trabalhadores(as) me parece algo que as pequenas editoras podem fazer por nós.
Conversando com amigas que escrevem e editam, entendi que a pessoa que edita é primeiramente um(a) leitor(a) crítico/a. Como leitor(a), o/ a editor(a) faz parte do processo de formação do/a escritor(a) e também, muitas vezes, está se formando como profissional. Aqui certo amadorismo, que não é uma fórmula comum a todas as pequenas editoras, mas que se faz presente em determinados casos, pode ser visto sob uma ótica positiva, já que afrouxa relações hierárquicas que fixam muitas vezes a editora no lugar de patroa e a escritora no lugar de trabalhadora temporária.
E nós, o que nós podemos fazer pelas pequenas editoras? Nós podemos expandi-las. Não (apenas) no sentido comercial, mas principalmente estético-ideológico. As editoras pequenas, porque menos agrilhadas às vendas massivas, podem suprir uma demanda de projetos mais ousados esteticamente e receber trabalhadores(as) que têm menos entrada no mercado editorial capitalista. Sim, estou falando do que podemos chamar de estilo relacionado a questões de gênero, étnico-raciais, faixa etária.
O que nós temos a oferecer de qualidade para as pequenas editoras tem um potencial decolonial. Estamos na América Latina, queremos ler mais e com mais qualidade, queremos ler o que nosso povo produz e não só o que produzido pra/apesar dele. As editoras menores podem dar força à diversidade de vozes em território nacional, com destaque para os livros que não seriam circuláveis se pensados em termos de mercado e que não competem com best-sellers estrangeiros. Pode-se pensar, inclusive, em traduções de autores de nacionalidades que também não nos alcançam.
Temos exemplos abundantes de grupos que se uniram para pensar todas as etapas do fazer literário e tomaram pra si a responsabilidade de estar presentes e conscientes de seus processos. Imediatamente, me vem à cabeça o selo montado pelo Coletivo Marianas, daqui de Curitiba, que tem por objetivo publicar dezenas de mulheres, estreantes ou não, sem critérios de seleção prévios. Esse projeto é uma resposta política frente a séculos em que a edição foi uma máquina de censura à escrita de mulheres. Não estou dizendo que esse deve ser o procedimento das pequenas editoras e muito menos que os/as escritores(as) devem sair por aí abrindo casas de publicação a torto e a direito, de jeito nenhum. Existe uma multiplicidade de dinâmicas editorais que operam segundo objetivos específicos. Mas o exemplo do coletivo serve para pensarmos no trabalho dessas mulheres que recebem o material, revisam, diagramam, ilustram, montam capa, organizam lançamentos, vendem e outras tantas tarefas que envolvem fazer literatura.
As vantagens de aproximar o/ a escritor(a) do processo literário são muitas. É claro que as negociações raramente são fáceis e envolvem o ego dos/as envolvidos/as, dinheiro, comprometimento. A confiança é constantemente testada nesses processos: é preciso confiar que a editora cumprirá sua parte do combinado, é preciso confiar que a pessoa que escreve e quer publicar cumprirá sua parte do combinado. É um desafio, sem dúvida. Mas me interessa muito pensar nos caminhos que podemos abrir juntas.
Fica fora desse texto-resposta* tanta, mas tanta coisa. Falta, por exemplo, refletir sobre uma questão central: o que caracteriza uma pequena editora? Vendas, capacidade de alcance, títulos publicados? Estou só tentando começar uma conversa aqui. Gostaria de ouvir outras experiências, ouvir o lado das editoras. Tenho outras tantas perguntas para fazer: por que montar uma pequena editora no nosso país hoje? Como são as relações trabalhistas entre os/as envolvidos/as? Quais são os entraves que nós escritoras/es oferecemos ao trabalho de vocês? O que podemos fazer para que todos nós leiamos mais e com mais interesse e prazer? Quais são as obrigações do Estado com a literatura brasileira?
Sou uma jovem escritora, sou uma trabalhadora da escrita e como tal quero, preciso, tento entender o potencial do nosso trabalho.
* Agradeço em especial as interlocuções com as amigas Sarah Valle e Beatriz Regina Guimarães Barbosa. As duas escritoras, editoras e tradutoras.
** Julia Raiz escreve. Sua pesquisa no doutorado abrange as áreas de teatro, tradução e feminismo. Também constrói, como militante, a UBM (União Brasileira de Mulheres) e edita os blogs literários Totem & Pagu e Pontes Outras. Seu livro de estreia, diário: a mulher e o cavalo, saiu em 2017 pela contravento editorial.
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