O Som Emanado na Escuridão: O Pio da Coruja em “S. Bernardo” – Salvio Kotter

Para Etel Frota
Ditado popular: se a coruja gritou, alguém vai morrer

Transcendência Simbólica da Natureza no Romance

No romance S. Bernardo, a maestria literária de Graciliano Ramos se revela não somente pela complexidade de seus personagens, mas também pelo uso de recursos naturais que extrapolam seu significado literal. O pio da coruja é um desses elementos que, ao se expandirem além da sua função descritiva, adquirem uma carga simbólica poderosa, realçando tanto o drama humano quanto o contexto ambiental em que se desenrola a trama. A presença desse som na narrativa não se limita a adicionar realismo ao cenário, mas serve como um espectro sonoro que ecoa o destino dos personagens, em especial o do protagonista, Paulo Honório. Sua repetição e o ambiente em que ressoa lançam uma nuance de presságio e presença constante, como se fosse um contraponto auditivo à introspecção e às inquietudes que permeiam a fazenda S. Bernardo.

A Noite esconde mais que Sombras

Este elemento natural, embora possa parecer trivial num primeiro olhar, comporta uma profunda significação ao ser imbricado na trajetória de ascensão e queda do protagonista. O pio noturno e persistente da coruja, por vezes associado à sabedoria, aqui se transfigura numa espécie de presságio, marcando também o isolamento crescente de Paulo Honório — não apenas em relação aos outros, mas em relação à sua própria humanidade. A perturbadora solidão deste homem, agravada por suas escolhas e pela distância crescente de sua esposa Madalena, é simbolizada pela solitária ave de rapina, cujo canto corta a noite, anunciando as tempestades internas e externas que se avizinham.

A Natureza como veículo da Consciência

O pio da coruja, além disso, pode muito bem representar a consciência do protagonista, que surge e se esvai em momentos de reflexão e autoconhecimento. Esse som, insistentemente retomado ao longo da narrativa, evoca questionamentos e permite ao leitor acompanhar o mergulho introspectivo de Paulo Honório, que oscila entre a racionalidade insensível e súbitos lampejos de reconhecimento da própria condição. Não por acaso, Graciliano Ramos escolheu esse animal, tantas vezes associado ao mistério e à morte, para compor o ambiente emocional em S. Bernardo, reforçando uma atmosfera densa que nos provoca a pensar sobre as escolhas que definem nosso destino.

Ambientação: Fusão de Conflitos e Paisagens

Graciliano Ramos, como artesão das palavras, entrelaça o pio da coruja à narrativa de S. Bernardo de modo a revelar as camadas mais ocultas e inquietantes da psique humana. O contexto rural e áspero da fazenda torna-se palco para uma disputa inabalável entre natureza e civilização, representada na personagem de Paulo Honório e seu esforço para impor ordem e progresso a um território que, simbolicamente, resiste a ser domado. A coruja, neste panorama, atua como um lembrete constante e inquietante da presença daquilo que é natural e indomável, contrastando com os esforços vãos do homem em subjugar a própria natureza.

Ecos Interpretativos na Analítica Literária

Longe de ser um mero detalhe descritivo, o pio da coruja em S. Bernardo ressoa com uma textualidade rica em significados subliminares e interpretações variáveis. Graciliano Ramos, sem permitir-se a excessos poéticos desvinculados da realidade, integra a coruja e seu som a uma paisagem que contribui para a tessitura de uma trama psicológica e social mais ampla. As circunstâncias e a densidade humana se amalgamam ao ambiente de S. Bernardo, comprovando que a natureza, em Ramos, é tão personagem quanto os seres de carne e osso que povoam suas páginas.

O Pio que Permanece no Tempo

Em retrospecto, o pio da coruja em S. Bernardo é uma marca indelével que sintetiza a essência de um estilo literário singular e de uma época marcada pela introspecção e pela crítica social. Graciliano Ramos consagra-se com esse recurso simbólico como um dos mestres do romance brasileiro, alguém capaz de convergir a complexidade da condição humana e sua convivência — não raro tumultuada — com a natureza. O pio da coruja, assim, permanece capturado na imortalidade do texto, pulsando com as nuances simbólicas que fazem de S. Bernardo uma obra imperecível na literatura nacional.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *