por Ricardo Corona
Cada vez mais tenho pensado a poesia imbricada com o lugar do sensível. Um lugar que resiste, inclusive, ao “poético”, ao “poema” e ao “poeta”. Porque a poesia não é tão-somente literatura. E não é, necessariamente, uma arte da palavra. Octavio Paz, em O arco e a lira, diz: “Nem todo poema – ou, para sermos mais exatos, nem toda obra construída sob as leis da métrica – contém poesia. (…) Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas” (1956, p. 16).
Esse não pertencimento é próprio da poesia e a desloca do seu lugar seguro – e ao mesmo tempo, pergunto: o poema seria o lugar seguro da poesia? – está cada vez mais perceptível na experiência contemporânea, que têm demonstrado, talvez pela própria circunstância de sua irrevogável diversidade, indícios e sintomas que insistem em expandir – resistir, portanto – o próprio sentido de poesia. Há muito já se diz que um filme contém poesia… Também o dizem o gesto escritural do artista visual, em suas instalações, performances, múltiplos ou publicações de artista. São desdobramentos que envolvem a poesia em uma miríade de práticas editorais contemporâneas, nas quais o corte, a dobra, a imagem, o vinco, a costura, o laço, a cola, o nó, o tipo de papel, a cor e a impressão têm o mesmo valor que a palavra. Explico melhor: O poiésis se faz presença nestes artefatos do mesmo modo que a palavra com ele se imiscuiu. Sabemos que o termo “poiésis” se originou na cultura grega e significa “fazer”. Mas fazer o quê? Fazer poesia. Fazer poema – ou: “poein”, que é “poema”, também em grego. Mas que, por sua vez, originou-se do verbo “poeiô”, que significa um leque mais amplo dos afazeres: “costurar”, “confeccionar”, “montar”, “criar”, “compor” etc. De onde se originou aquilo que chamamos “poesia” e “poema”, pode-se entender que deu mais abrigo à palavra. Isto me faz pensar que o “fazer” é um a posteriori ao acontecimento ou a “experiência” de “poesia”. Para compreendermos melhor basta que pensemos a respeito do acervo a-histórico da diversidade cultural indígena, cujo tripé “oral-pictórico-gestual” é da mais complexa imbricação poética. Muitas vezes a palavra não está envolvida, apenas o rito. E essa complexa produção poética está aí antes mesmo de acedermos à própria ideia grega de poesia.
Quero com isso dizer que há sintomas que testemunham que a poesia está mais para um “fenômeno” na linguagem, cujo sentido está sempre por fazer, do que uma solução estável, e, portanto, meramente formal. Esse lugar instável é o da própria poesia. É nesse limiar do improvável que ela se permite expandir para todas as artes. Onde algo mais se insinua, quer nos dizer, nos seduzir antes de se encerrar em uma forma – ou poema – ou mesmo no sentido de autoria, de obra. Antes dela pertencer ao poeta, ao poético e ao poema. Algo nela é da ordem do improvável e que a poesia se relaciona incessantemente. Algo que, segundo Maurice Blanchot, é “o exterior”. Uma “escrita exterior à linguagem que todo discurso, inclusive o da filosofia, recobre, recusa, ofusca, por uma necessidade verdadeiramente capital” (2001, p. 73). E prossegue: “é tanto a intimidade da instância, quanto a dispersão do Exterior, mais estritamente, é a intimidade com o Exterior, o exterior tornado a intrusão que asfixia e a inversão de um e de outro, aquilo que chamamos, ‘a vertigem do espaçamento’” (2001, p. 91). Este lugar inominável no qual não se pode nem dizer jocosamente um lugar de nadas, é, para Blanchot, “o neutro”: “presença sem presente, sem conteúdo determinável, sem termo atribuível” (2001, p. 91). Pode-se dizer que é um lugar de potência, de não revelação, um lugar em que o sensível acontece o tempo todo. Um lugar que a poesia teima em se relacionar desde sempre. Um lugar em que, segundo o filósofo Emanuele Coccia, “vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos circunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens que nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se escreveu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada. A influência da sensação e do sensível sobre nossa vida é enorme, embora permaneça praticamente inexplorada. Enfeitiçada pelas faculdades superiores, a filosofia raramente mediu o peso da sensibilidade sobre a existência humana. Esforçando-se por provar e fundar a racionalidade do homem, procurando separá-lo a qualquer custo do resto dos animais, ela frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações”. Mas não se trata, aqui, de dizer que o sensível é uma qualidade do humano. “Sentido e sensação não possuem nada de especificamente humano. A sensação não é aquilo que transforma um animal em algo humano; ela é, pelo contrário, segundo a tradição, “a faculdade através da qual os viventes, para além da posse da vida, se tornam animais”. “O sensível é aquilo pelo qual vivemos indiferentemente à nossa diferença específica de animais racionais: paradoxalmente, ele define a nossa vida enquanto ela ainda não tem nada de especificamente humano. Na experiência e no sonho, dormindo e em vigília, vivemos uma vida inferior ao pensamento, não necessariamente definida pela autoconsciência, e integralmente tecida pelo sensível.” (2010, pp 9-10)
Aproximar-se o quanto possível desse lugar talvez seja a ética da poesia, no sentido de reunir em seu espaçamento tensões que a fazem questionar mais frementemente o poder da linguagem. Ética porque a poesia é linguagem, mas igualmente fracassa como possibilidade de anulação deste poder da própria linguagem para justamente fazer-se em abertura generosa a essa “presença” e a esse “agora” como lugar daquilo que jamais será visto duas vezes da mesma maneira. Eis a generosidade da poesia: sua inutilidade útil. A poesia se avizinha à natureza do floco de neve, da nuvem e do coral. A poesia não se repete assim como não existe forma igual nessas formas da natureza. Nenhum floco, nenhum coral, nenhuma nuvem é igual duas vezes. A poesia, portanto, está na ordem da economia do ser. Sua ética mede-se por sua aproximação da fala do coração e por seu distanciamento da eficácia do discurso. Assim, em medida vulgar, podemos testemunhar que a poesia se faz presença na voz murmurante de uma avó, de uma velha índia, de um menino ou menina com seu brinquedo da mais potente magia, ao passo que se distancia, cautelosa, do discurso normativo de um prefeito ou juiz.
A poesia assume o seu fracasso diante desse Exterior, dessa exterioridade sempre se fazendo. A poesia, ainda com Blanchot, “não está aí para dizer a impossibilidade: ela lhe responde somente, respondendo ela diz. Assim, em nós, é a partilha secreta de toda palavra essencial: nomeando o possível, respondendo ao impossível (…) de modo a apaziguar a questão que vem obscuramente desta região; menos ainda, a transmitir, como um oráculo, alguns conteúdos de verdade que o mundo da luz ainda desconhece. É a existência da poesia que, cada vez que ela é poesia, responde por si própria e, nesta resposta é atenção ao que se destina (desviando-se) na impossibilidade. Ela não o exprime, ela não o diz, ela não o submete à atração da linguagem. Mas ela responde. Toda palavra inicial começa por responder, resposta ao que não foi ainda ouvido, resposta ela mesma atenta, onde se afirma a espera impaciente do desconhecido e a esperança desejante da presença” (2001, pp. 93-94).
*Esse texto teve uma primeira versão, “Poesia e o limiar do improvável”, apresentada no ciclo de palestras “O que é a poesia?”, na Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo em 2012.
Referências bibliográficas:
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. A palavra plural. Vol. 1. Tradução: Aurélio Guerra Neto. SP: Ed. Escuta, 2001.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie. 2010.
NANCY, Jean-Luc. Résistence de la Poésie. Paris: William Blake & Co. 1999.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. México: Fondo de Cultura Económica, 1956.
Ricardo Corona atua principalmente nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, curadoria, linguagem e cultura. É autor dos livros Mandrágora (Curitiba: Medusa, 2017), Cuerpo sutil (Santiago de Querétero, México: Calygramma, 2014) ¿Ahn? (Madri: Poetas de Cabra, 2012), Curare (SP: Iluminuras, 2011), Amphibia (Porto, Portugal: Cosmorama, 2009), Tortografia, com Eliana Borges (SP: Iluminuras, 2003) e Cinemaginário (SP: Iluminuras, 1999). Traduziu Palavrarmais (2017) e Livro deserto (2013), de Cecilia Vicuña e, com Joca Wolff, os livros Momento de simetria (2005) e Máscara âmbar (2008), de Arturo Carrera. Com Eliana Borges edita a revista Canguru, de literatura e arte. Participou das curadorias: Zoona II – Américas Transitivas. Capela Santa Maria/UNILA, 2017; Independência: quem troca? UFPR/UFES, 2014; Monstra – Nanofestival de poesia em performance, Casa Hoffmann/FCC, 2014; entre outras.
Foto: verso do livro Fragma (Fortaleza: Funcet, 2007), de Cândido Rolim
Uma resposta
Ahh poesia… tú é linda