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Foi cerca de dez anos atrás ouvi pela primeira vez na capacidade de um tal aplicativo, tal dispositivo internético, um programa que tinha composto um conto em Londres. Sim! Um conto escrito pela máquina ou que valha na disposição aleatória de algoritmos. A informação veio-me num debate de autores pelo nosso maior crítico literário e profundo conhecedor de ficção científica, novas tecnologias e suas imbricações com a escrita Nelson de Oliveira. Sensação de precariedade e dispensabilidade da criatividade sinônimo de epopeia cognitiva por milênios. Não pensem que escritores não possam alvitrar sobre Inteligência Artificial: ralamos milênios para vocalizar o espírito turbilhonado de civilizações e não venham nos apontar o dedo como não iniciados no que em cheio primeiro nos atinge. Não existem neófitos quando entra em jogo o destino de nossa precedência pensante. A questão literatura e IA é um tópico relevante dentro de uma celeuma que se perpetuara, veio para ficar, a irreversibilidade avassaladora da IA em nossas vidas e a necessidade de regulação global com ajustes locais e temáticos. Citando mestre Horário Quiroga contista supremo latino-americano e teórico arguto do gênero: “Na literatura a ordem dos fatores altera profundamente o resultado”. Como avaliar, decodificar, estabelecer parâmetros estéticos à produção de algoritmos líricos, narrativos, ensaísticos. Matutando aqui penso em quatro contos universais que me abismo por sua perícia e que comando cibernético o superariam em maestria?

“Uma evolução da miopia” – Clarice Lispector

“A fronteira do asfalto” – Luandino Vieira

“Olhos d’água” – Conceição Evaristo

“O fio das missangas” – Mia Couto

E com meus botões vou elucubrando: e os que manipularão textos alheios para criar algo assemelhado ou rebobinado ou “mixado”? Os que mimetizarão estilos, conteúdos, sintaxes generativas de novas informações a partir de conjuntos de dados pré-existentes? Terá profundidade ou personalidade seja lá o que for o destino do conceito de personalidade determinado texto de IA? Quem se apresentará curador dos dados para que a máquina escreva um conto ou poema? Como as máquinas lidarão com ambiguidade e subjetividade?

Diz-nos o cientista brasileiro Marcelo Gleiser: “O perigo é perder a distinção entre o real e o simulado, colocando em risco a capacidade de nos relacionarmos. Precisamos de uma nova ética corporativa”. Ao que anteponho o arrazoado peremptório do engenheiro de robótica israelense da Universidade de Colúmbia: “Só há uma solução. Você sempre pode gerar outra inteligência artificial para distinguir o que é real e o que é falso”.

Faz já décadas me socorro no pensamento ágil de Slavoj Zizek, o que Zizek acha disso? Amo Zizek até com suas hipérboles e em Arriscar o impossível ele crava: “Por um lado, devemos abandonar a velha ideia humanista de que, haja o que houver, uma certa forma de dignidade humana será mantida ou reafirmada. Isso é pura tapeação. Essa visão presume, dogmaticamente, que uma ideia básica de humanidade sobreviverá de algum modo a todas essas transformações sociotecnológicas. Mas também não confio na ideia oposta dos que acham que, até agora, fomos cerceados por uma certa estrutura patriarcal, e que a possibilidade das manipulações genéticas proporciona uma nova plasticidade, uma nova liberdade. Não sei qual será o resultado. Mas estou convencido de que, se essas tendências continuarem, o próprio ‘status’ do que significa sermos humanos se modificará. Até as coisas mais elementares, como a fala, a linguagem, o senso emocional (…) serão afetadas. Não devemos presumir nada, e seria inconsequente ter uma postura otimista ou pessimista”.

Como diz Dr. Miguel Nicolelis por que esse “fetiche da substituição”, a relação oracular da transmodernidade com a tecnologia não necessariamente necessária? Discorro escorado nestes mestres com a sorte de poeta da amizade com um pensador brasileiro que melhor e a mais tempo percorre as veredas dessas angústias: o professor e filósofo Oswaldo Giacóia Jr.

Recomendo todos seus livros, vídeos e palestras, um tenho sempre à mão para congeminar minhas reflexões: Heidegger urgente, introdução a um novo pensar. Uma passagem destaco aqui: “O credo antropocêntrico e humanista é uma ilusão ingênua e perigosa, pois concebe a tecnologia como instrumento à disposição e controle da racionalidade humana (…) Com a hegemonia do sentido instrumental e antropocêntrica da técnica, o progresso tecnológico compulsivo subverte a lógica da ética humanista. As pesquisas biogenéticas instrumentalizam a base somática da personalidade, tornando-a disponível para fins incompatíveis com o ‘ethos’ que, até aqui, constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o horizonte de sua autocompreensão”.

Nenhum ludismo estético, nenhum cartismo cognitivo, minha apreensão é a banalização dos algoritmos em situações absolutamente dispensáveis. Elenquei esses mestres para seguir colocando em aspas assertivas prepotentes a partir da IA e a precarização consentida de nossa criatividade sucedida pelo depauperamento intelectual das novas gerações. A última palavra ao poeta, um precioso poeta transcendentalista, Murilo Mendes em entrevista ao Suplemento Literário do Minas Gerais em 1973: “A poesia é incorruptível e nunca vai morrer. Porque a poesia faz parte do conjunto global da cultura, está viva e presente em tudo, na música, no cinema, nas artes plásticas, no teatro (…) Podem mudar os materiais, a poesia pode voltar a ser mímica, a ser pedra, a se oferecer até em transmissão de pensamento, não sei. Sou de uma prudência extraordinária quanto a programas e previsões. As perspectivas para a poesia são tão infinitas quanto as da vida”. Oxalá o poeta mineiro tenha razão. Como repto em defesa da criatividade in natura indico dois contos essenciais para ilustrar nossa conversa: “O Arquivo”, de Victor Giudice, e “A margarida enlatada”, de Caio Fernando Abreu.

Flávio Viegas Amoreira é prosador e poeta. Pela Kotter, lançou as narrativas breves de Apesar de você, eu conto e os versos de Whitman e Pessoa, meus camaradas.

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