por Regina Ribeiro
Conheço cada pinta do teu corpo e cada ângulo do teu rosto. Vi e revi sua vida centenas de vezes por dia, como se fosse uma forma de entretenimento, a minha novela, já não abria mais um livro, acordava e checava tuas atualizações, ia trabalhar e a cada pausa checava outra vez. Aprendi meios e baixei aplicativos para burlar a segurança das grandes redes sociais, te espiava sem ser vista, ocultava-me por trás de pseudônimos, fakes, grupos de anônimos, me fiz hacker dessa maneira, me formei na rebeldia virtual e logo fui levada pelos usuários que encontrava nessa teia para o mais profundo dos submundos, a deep web, e seus fóruns repletos de gente raivosa e ainda mais obsessiva que eu.
E, com essas frequentações, comecei a achar normal checar teus stories também antes de dormir, como se cumprisse um ritual tão necessário quanto o de escovar os dentes, achei normal, quando não havia mais notícias suas por dias, vasculhar as tuas fotos antigas, que eu já tinha visto inúmeras vezes e em seguida ler cada comentário feito sobre cada uma das fotos, mesmo as de dez anos atrás, quando você não passava de garota esquálida e desmilinguida e, quando isso passou a não bastar, comecei a visitar seus pares, seus perfis, conhecer cada membro da tua família, a ponto de hoje ser bem capaz de fazer uma árvore genealógica & eu já sabia o que você bebia, o que gostava de comer, seus gostos musicais, preferências cinematográficas e diretrizes políticas.
Com o tempo, fui lendo nas entrelinhas seus dramas, os mesmos dramas pelos quais passei quando tinha a tua idade e o mesmo marido. Entendi quando você começou a desconfiar, só sentindo na pele pra saber e eu me senti próxima porque só eu entendia o que você passava e só você poderia entender o que me aconteceu. Aos poucos, o rosto que eu julgava feio, o rosto da megera pela qual perdi meu homem foi ficando familiar, simpático até, éramos as duas integrantes de um clube, o clube das mulheres do @rafael_bastos, você não sabia de mim, a antiga, e eu não deveria saber de você, a nova.
Supostamente não deveria pois conheço cada curva do teu corpo, cada ângulo ruim, podia até te dar umas dicas de como não ficar corcunda diante do fotógrafo, ou de como sombrear o nariz com um pó mais escuro, para diminui-lo um pouco (há inúmeros tutoriais explicando). Renovaria o teu guarda-roupa, já se vê que não é teu forte, essas tamancas, por exemplo, ninguém mais usa há pelos menos três décadas, talvez nem na época da tua avó, mas na da minha, talvez lá fosse de uso, o que ainda assim não esconde o fato de serem terrivelmente feias. E o chapéu. Ai, o chapéu que me fez olhar e ficar deprimida por dias, por que meu paizinho, fui trocada por isso?
Pensei: pelo menos deve ter personalidade, mas aí você me vinha com frases de autoajuda, auto superação, resiliência, 50 tons, fotos no espelho do banheiro, posts do tipo estou indo no mercado comprar absorventes e eu pensava mais uma vez: foi por isso que fui trocada e olhava tuas fotos e olhava e olhava e aí comecei a entender e aceitar essa categoria de pessoas as quais sempre quis distante, essa categoria que é a única que merece rótulos, que eu não hesito em classificar, definir, delimitar, essa categoria de gente normal. E eu que passava longe dela, e que até a temia um pouco por essa tendência que têm os normais de nos subjugar de maneira muito sutil, comecei a aceitar que era isso que ele buscava, a normalidade e comecei a entender a normalidade, você me ensinou muitas coisas sobre aceitação.
Hoje só quero colocar seu rosto feio e sem-graça, mas o rosto que meu marido decidiu amar, no meu colo e falar: meu nome é Irany, tenho 45 anos e sou adita à internet. E você, pega desprevenida no meio da feira ou na fila da padaria, normal que é, vai pensar que eu sou doida e vai falar de mim pra ele, a mulher estranha da fila, e ele vai sentir um ligeiro mal-estar mas vai ficar calado e você vai dormir pensando em mim.
*Regina Ribeiro se formou em Comunicação Social no Paraná e publicou em revistas literárias no Brasil antes de mudar-se para Paris, onde se graduou em Filosofia pela universidade Paris-Sorbonne. É mestre em História de Filosofia, Metafísica e Fenomenologia e professora de filosofia em um lycée na França. Em breve lançará seu romance Ignóbil pela Kotter.
“Profunda-mente dentre” faz parte da coluna mensal de inéditos da Regina.
*Foto, fonte: revistapegn.globo.com,
*Artista: Anthony Michael Simon
Uma resposta
Regina, que jeito intrigante de escrever! O texto me prendeu do começo ao fim, do fim (que aparecia no enunciado) ao começo, até o fim!