Ouvi uma canção assobiada!
Sim, há muito tempo não ouvia alguém assobiando, canções tristes, pela cidade.
Não era passarinho, era gente.
Não pude ver o rosto, saber quem era o seresteiro ou seresteira do tal concerto, de uma pessoa só.
Reconheci o assobio, “Olho para chuva que não quer cessar, nela…”
Diante da canção, aguardo a hora da saída, vou ao café, peço uma bebida, sou o único a beber cerveja no local.
Amigo, A, que há tanto tempo não via, senta-se comigo.
Ele me conta sobre a rádio, cobertura do esporte, suas idas ao cinema – Tantos filmes.
Os livros que anda lendo.
Sou só ouvidos.
Somos amigos de longa data, quero saber mais:
– Você está escrevendo?
A, timidamente me conta sobre suas tiradas, aforismos, frases…
Pergunto com intensidade.
– Vai publicar?
Calado, me olha.
Mudo de assunto, lembro do assobiador de agora pouco.
– Fazia tempo que eu não ouvia alguém assobiando melodias, assopradas ao vento.
Ele desconversa e atordoa.
– E o Jean, hein?
Aquilo me pareceu estranho.
Recorro a memória.
Jean-Luc Godard, Jean Gabin, Jean-Michel Basquiat, Jean-Paul Belmondo, Jean-Paul Sartre, Jean-Baptiste Debret…
Respondo o que vem na cabeça.
– Morreu!
– Sério?
– Sim! Godard morreu, Belmondo morreu…
– Não é nada disso!
Sorvemos nossas bebidas, penso em pedir algo mais forte, acabo retornando a conversa.
Insisto no assobio.
Sabendo que, A, é conhecedor profundo de música, pergunto: – De quem era a canção?
– Demétrius!
Responde sem titubear.
– Você tem ouvido gente assobiar, por aí?
– E o Jean, hein?
Pareço agora desconcertado, ignoro a pergunta, quero saber sobre assobios.
– Pela manhã, tenho ouvido cantos de pássaros!
– Lembro que perto de sua casa tem um bosque, é isso?
– Sim!
Agora sou eu que respondo curto e me calo.
Somos dois sujeitos a beber cerveja em um café, onde todos parecem serenos. Não estamos serenos, apesar de termos todos os sintomas da melancolia estampadas nas faces. Somos agitados na alma.
– Quem assobiava?
– Então, não sei. As janelas do trabalho estavam fechadas, apenas ouvi, era na rua, alguém assobiando a triste canção.
Fita-me por um instante.
Agora, eu devolvo a dúvida.
– E o Jean, hein?
Olhamos para a porta do café.
Alguém parece assobiar outra canção triste.
– O Jean.
– Qual Jean?
– O Jean Baptiste “Toots” Thielemans.
– Quem?
– Jazzista, tocou com o Sinatra.
– Hum!
– Toots Thielemans, era considerado o “Rei da Gaita”.
– Não conhecia.
– Dominava as técnicas de tocar gaita e de assobiar.
– Você é sabido demais, irmão!
Sorrimos pequeno, recolhemos nossos olhos para a porta.
O assobio continua e escorre pelas calçadas, vai embora.
Nesta prosa assobiada, somos parte de um tempo que passou feito um assobio. Estamos vivos ainda, a arte permaneceu como o nosso vício favorito.
– Lembra o início de “West Side Story”.
– Lembro bem daquele filme.
– Falo dos assobios.
– Sim!
– O filme que eu mais assisti na vida! De 1961, o clássico!
– Também gosto bastante!
– Bebamos ao assobio.
Sorrimos curto novamente, às vezes somos amargos.
Assobiamos como os jets e sharks do filme de Wise e Robbins.
Eu sou, Russ Tamblyn, ele poderia ser, Chakiris ou Beymer.
Nesta tarde, no café, antes de nos despedirmos, acesso o youtube no celular, encontro Jean “Toots Thielemans”, tocando gaita e assobiando.
Após aumentar a trilha sonora, podemos deixar subir a ficha técnica para irmos embora.
Nossas conversas sempre terminam em 24 quadros por segundo.
–
Fabio Santiago é poeta e prosador. Publicou os livros Intramurus, Versos magros (compre aqui), Mar de sombras e Cantos temporais. Instagram: @fsantiago006
Respostas de 2
Querido amigo e grande escritor e poeta, teu texto me prendeu do início ao fim, tanto pelos mistérios, quanto pelo desdobramentos da conversa entre o dois. Sim, trata-se de uma “conversa de assobio’, mais um termo inédito que sua criatividade é talento constroem. Parabéns, amigo querido, teu texto é ótimo. Um beijo
Boa tarde, Fábio! Acabei de ler tua crônica. Hoje está uma dessas tardes. De assobiar, de caminhar até o cinema. Ou parar em um café, fugindo do sol e tomar demoradamente uma cerveja. Papear com algum amigo querido. Nesse intervalo melancólico de Copa do Mundo. Assistir a um clássico do cinema: “West Side Story” ou “Janela Indiscreta”. Com aqueles “tempos mortos” para se observar demoradamente os espaços de um café ou a rua. E assobiar no fundo do cinema alguma canção, que a memória insiste em resgatar. Para depois esquecer. Abraço.