Tarde assobiada (Fabio Santiago)

Ouvi uma canção assobiada!

Sim, há muito tempo não ouvia alguém assobiando, canções tristes, pela cidade.

Não era passarinho, era gente.

Não pude ver o rosto, saber quem era o seresteiro ou seresteira do tal concerto, de uma pessoa só.

Reconheci o assobio, “Olho para chuva que não quer cessar, nela…”

Diante da canção, aguardo a hora da saída, vou ao café, peço uma bebida, sou o único a beber cerveja no local.

Amigo, A, que há tanto tempo não via, senta-se comigo.

Ele me conta sobre a rádio, cobertura do esporte, suas idas ao cinema – Tantos filmes.

Os livros que anda lendo.

Sou só ouvidos.

Somos amigos de longa data, quero saber mais:

– Você está escrevendo?

A, timidamente me conta sobre suas tiradas, aforismos, frases…

Pergunto com intensidade.

– Vai publicar?

Calado, me olha.

Mudo de assunto, lembro do assobiador de agora pouco.

– Fazia tempo que eu não ouvia alguém assobiando melodias, assopradas ao vento.

Ele desconversa e atordoa.

– E o Jean, hein?

Aquilo me pareceu estranho.

Recorro a memória.

Jean-Luc Godard, Jean Gabin, Jean-Michel Basquiat, Jean-Paul Belmondo, Jean-Paul Sartre, Jean-Baptiste Debret…

Respondo o que vem na cabeça.

– Morreu!

– Sério?

– Sim! Godard morreu, Belmondo morreu…

– Não é nada disso!

Sorvemos nossas bebidas, penso em pedir algo mais forte, acabo retornando a conversa.

Insisto no assobio.

Sabendo que, A, é conhecedor profundo de música, pergunto: – De quem era a canção?

– Demétrius!

Responde sem titubear.

– Você tem ouvido gente assobiar, por aí?

– E o Jean, hein?

Pareço agora desconcertado, ignoro a pergunta, quero saber sobre assobios.

– Pela manhã, tenho ouvido cantos de pássaros!

– Lembro que perto de sua casa tem um bosque, é isso?

– Sim!

Agora sou eu que respondo curto e me calo.

Somos dois sujeitos a beber cerveja em um café, onde todos parecem serenos. Não estamos serenos, apesar de termos todos os sintomas da melancolia estampadas nas faces. Somos agitados na alma.

– Quem assobiava?

– Então, não sei. As janelas do trabalho estavam fechadas, apenas ouvi, era na rua, alguém assobiando a triste canção.

Fita-me por um instante.

Agora, eu devolvo a dúvida.

– E o Jean, hein?

Olhamos para a porta do café.

Alguém parece assobiar outra canção triste.

– O Jean.

– Qual Jean?

– O Jean Baptiste “Toots” Thielemans.

– Quem?

– Jazzista, tocou com o Sinatra.

– Hum!

– Toots Thielemans, era considerado o “Rei da Gaita”.

– Não conhecia.

– Dominava as técnicas de tocar gaita e de assobiar.

– Você é sabido demais, irmão!

Sorrimos pequeno, recolhemos nossos olhos para a porta.

O assobio continua e escorre pelas calçadas, vai embora.

Nesta prosa assobiada, somos parte de um tempo que passou feito um assobio. Estamos vivos ainda, a arte permaneceu como o nosso vício favorito.

– Lembra o início de “West Side Story”.

– Lembro bem daquele filme.

– Falo dos assobios.

– Sim!

– O filme que eu mais assisti na vida!  De 1961, o clássico!

– Também gosto bastante!

– Bebamos ao assobio.

Sorrimos curto novamente, às vezes somos amargos.

Assobiamos como os jets e sharks do filme de Wise e Robbins.

Eu sou, Russ Tamblyn, ele poderia ser, Chakiris ou Beymer.

Nesta tarde, no café, antes de nos despedirmos, acesso o youtube no celular, encontro Jean “Toots Thielemans”, tocando gaita e assobiando.

Após aumentar a trilha sonora, podemos deixar subir a ficha técnica para irmos embora.

Nossas conversas sempre terminam em 24 quadros por segundo.

Fabio Santiago é poeta e prosador. Publicou os livros Intramurus, Versos magros (compre aqui), Mar de sombras e Cantos temporais. Instagram: @fsantiago006

Respostas de 23

  1. Querido amigo e grande escritor e poeta, teu texto me prendeu do início ao fim, tanto pelos mistérios, quanto pelo desdobramentos da conversa entre o dois. Sim, trata-se de uma “conversa de assobio’, mais um termo inédito que sua criatividade é talento constroem. Parabéns, amigo querido, teu texto é ótimo. Um beijo

  2. Boa tarde, Fábio! Acabei de ler tua crônica. Hoje está uma dessas tardes. De assobiar, de caminhar até o cinema. Ou parar em um café, fugindo do sol e tomar demoradamente uma cerveja. Papear com algum amigo querido. Nesse intervalo melancólico de Copa do Mundo. Assistir a um clássico do cinema: “West Side Story” ou “Janela Indiscreta”. Com aqueles “tempos mortos” para se observar demoradamente os espaços de um café ou a rua. E assobiar no fundo do cinema alguma canção, que a memória insiste em resgatar. Para depois esquecer. Abraço.

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