por Ricardo Pedrosa Alves
Quero começar com uma pergunta que F. Jameson se faz na página 34 de seu livro O Inconsciente Político: a questão colocada ali é: “o texto é um objeto autônomo ou ‘reflete’ um contexto ou campo e, neste segundo caso, apenas repete ideologicamente esse contexto ou campo, ou possui uma certa força autônoma graças à qual poderia ser visto como negação desse contexto?”
Algumas observações podem ser pertinentes: a primeira diz respeito ao estatuto da obra de arte na modernidade. A revolução estética da modernidade parece ser aquela que põe a ênfase no fazer da arte, para além de uma veiculação representativa de verdades que lhe antecedem. A obra parece resultar de sua própria lei de produção e ser prova suficiente de si mesma.
Ora, este fazer é irresistível, embora o herói moderno (Hamlet ou Fausto) faça sem exatamente saber o que faz. A arte, enquanto estética, traria uma ação voluntária a um processo involuntário: a escrita, ao contrário da palavra viva da ordem representativa clássica (aquela palavra que se faz ato, a palavra do orador que contagia o auditório ou do herói trágico que vai até o fim de suas vontades), a escrita é contraditória: ela fala e se cala ao mesmo tempo. Ela fala ao fazer falar as coisas: tudo fala, dizia Novalis.
Na perspectiva da hermenêutica (de Freud ou de Marx), os detalhes falam, o inconsciente fala. A escrita fala, portanto, como decifração dos signos de história escritos nas coisas. Tudo é rastro e vestígio do social. O escritor vai ler nos detalhes da prosa do mundo uma nova mitologia. Tudo fala significa também que a estética da modernidade não faz distinções entre temas altos e baixos, não respeita a ordem da representação clássica. Mas a insignificância só pode falar se for mitologizada em fantasmagoria pessoal. Por outro lado, essa nova escrita da estética da modernidade, parece também calar. Ela é o solilóquio mudo, que não fala a ninguém. É a palavra da renúncia, daquele “fracassado” que Mario de Andrade detectava como herói de alguns romances de 30.
A segunda observação que quero deixar para o debate proposto por Jameson diz respeito a diferentes inconscientes: o inconsciente freudiano, o inconsciente político de Jameson, parecem ambos ter uma necessidade de submeterem o inconsciente estético que parece estar na base da arte da modernidade. Os escritores são aliados tanto da discussão de Freud com a medicina positivista de seu tempo, quanto da discussão da história como luta de classes no marxismo. São aliados porque sabem coisas que a ciência ignora, conhecendo a importância da racionalidade própria do fantasmático (do oculto, do detalhe, da insignificância) desprezada pelo positivismo científico.
Os escritores aceitam a racionalidade profunda tanto da fantasia como da ideologia. Apesar disso, merecem ser corrigidos pelas hermenêuticas: eles não dão atenção suficiente ao valor significativo das fantasias e das ideologias. Existe a necessidade das hermenêuticas em colocar ordem entre as dimensões do saber e do não-saber, embaralhadas pela estética moderna. A ambiguidade precisa ser desfeita e elucidada, e o é em geral recorrendo-se ao conteúdo e não à forma.
Para tanto, a intriga causal da antiga ordem representativa clássica é reempossada. Se quem escreve, ao reivindicar o livre jogo da fantasia e da realidade, se outorga uma ambiguidade entre a consciência e a inconsciência, as hermenêuticas querem desfazer a confusão, não importando se a história é verdadeira ou fictícia. O que a hermenêutica propõe é o encadeamento causal unívoco, correto. Ela privilegia apenas a dimensão da escrita que faz falar, a do sintoma que é vestígio de uma história, rejeitando a voz anônima e insensata da vida inconsciente (a escrita que cala).
É como se houvesse sempre uma vocação moral na interpretação (psicanalítica ou marxista), tentando tirar a arte de seu caminho para além do bem e do mal. Para tanto, recorre-se sempre à exigência da causalidade última, seja a da castração seja a da ideologia. Onde está a potência do estético? Nessa força do desamparo de poemas e narrativas ou na intriga biográfica ou social? São diferentes inconscientes, portanto, que estão em disputa, embora também sejam bastante permeáveis. A revogação que a estética tenta fazer da representação clássica (o livro sobre o nada de Flaubert, a página em branco dos simbolistas) é negada pela hermenêutica que quer traduzir a fantasia em uma intriga de causalidade social ou traumática.
Afinal, existe esta autonomia antirrepresentativa da arte para a hermenêutica? Onde está o literário, o inconsciente literário, diante do inconsciente político?
*Ricardo Pedrosa Alves (Governador Valadares/MG, 1970), é poeta e professor universitário. Publicou os livros de poesia Desencantos mínimos (Iluminuras, 1996), Barato (Medusa, 2011), Orumuro/Remerzbau (com Ronald Augusto e Candido Rolim – Butecanis, 2018) e Poemas baseados (Kotter, 2018). É professor universitário em Guarapuava/PR, onde vive com a Ana e muitos cães. Tem doutorado em Letras (UFPR) e pesquisa temas relacionados ao romance moçambicano contemporâneo, ao pós-colonialismo e ao pensamento social brasileiro.