A poesia do encontro em Vila Rosa Maria

por Vinicius Comoti

 

O carrossel da vida em Vila Rosa Maria

Foi no meu aniversário que o cartunista Solda me presenteou com alguns livros de Sergio Rubens Sossélla. Versos que na primeira ronda, ainda mesmo no bar que acontecia a festa, me estalaram ao que de mais profundo eu conhecia de poesia. Uma erupção, chibatas ouriçadas, poesia mínima que remenda a linguagem até a sua Inquisição. Fui me remendando. Remendei a minha disciplina com os livros, remendei a minha faísca com a palavra, e especialmente remendei a minha saga por mais livros do autor. Livros raros, alguns de tiragens de 15, 20 exemplares, feitos com a parceria de sua mulher-paixão Rosa Maria, estrelas cadentes que aos poucos floriam a minha vereda pueril. Sossélla montou a sua biblioteca, Vila Rosa Maria, e passou a dividir a paixão dos livros com a do cinema americano; outra fagulha embaraçava a minha cabeça: cinema e poesia, gominhos de uma mesma bola. A vida queimava e o Sossélla comigo; dando aula, discussão na academia, madrugadas fechando com o epitáfio de que a poesia de Sossélla é uma rachadura no coração.

 

a morte

revida

a vida

 

Depois da explosão, a consequência. Os meus livros de poesia foram nascendo mais beberrões, os versos paparicando abelhas e inchando os meus dedos. Não me importava que uma tia pegasse o meu livro e rechaçasse a poesia mínima. Mas Vinicius, só essas palavrinhas? E esse espaço em branco? Pensava em Sossélla e a sua virtude, a poesia mínima exige muito cuidado. Para se chegar ao nível certo da “flechada-zen” é necessário trabalho, constatação que Leminski-Bresson-Kolody já explicitaram em suas trilhas, e que na aura da leitura se emaranha muito mais. Nessa redoma, o grande mistério da poesia de Sossélla. Ela que te escolhe. Ela que te carbura ao ponto de potencializar a questão do leitor-poeta de Leminski (poesia tanto no emissor quanto no receptor); exige brio ao inatingível.

 

quem colhe tempestade

nem sempre semeou vento

 

Uma poesia minha ganhou o prêmio no Femup, Festival de Música e Poesia de Paranavaí. Apenas um verso rangia no meu pensamento, o endereço que está nos livros. Rua Martin Luther King, 3360. Cheguei na rodoviária e me animei com uma estrela desinibida que brincava com o alvorecer. Fui para o hotel, arrumei minhas coisas e na primeira oportunidade, chispei ao destino. O detalhe do muro na esquina me fez levar algumas horinhas, inclusive encontrei a casa depois de passar por todo o comércio arejando o poeta. Fiquei trêmulo, observando a mangueira, as poesias na entrada da casa e no devir da campainha, me retirei já satisfeito com aquele tempo que flanei diluindo uma íntima conversa sobre os espíritos.

 

na luta

entre o mar e o rochedo

marisquei

 

O festival terminou na noite do Sábado, com a descoberta de pessoas irradiantes em suas desventuras, além das cigarras e a sua cantoria. Eu estava voltando para o Hotel, disposto a dormir e encarar a volta no Domingo, até que André e Karina, músicos ilustres, me apresentaram ao Amauri, pai do festival e fonte de uma luz especial. Começamos a conversar, surgiu o assunto da minha poesia mínima, até que retruquei que o prêmio seria uma homenagem ao poeta Sergio Rubens Sossélla. Falei do meu sonho e da minha peregrinação no dia anterior, ao que Amauri me inquietou: eu sou amigo da Rosa e do Serginho, o filho dele. Se quiser amanhã te levo para conhecê-los, já vou mandar um zap! O zumbido bateu e depois que ele confirmou, fui correndo para o Hotel esperar o dia seguinte.

 

vejo agora o céu por dentro

ah! saudade do inferno por fora

 

Amauri chegou pela manhã e fomos para Vila Rosa Maria. André e Karina foram juntos, intrigados com o meu nervosismo. Rosa Maria foi abrir a porta e a minha perna fisgou, entrei na biblioteca, a lágrima partiu. Conheci o Sergio, seu filho que me foi prateleira por prateleira falando sobre a biblioteca e o convívio com o pai. Rosa tirava artigos de jornais, originais de livros, anotações e eu ia acrescentando com outras coisas que eu sabia. A conversa fluía e as lágrimas lambavam. Sergio se dirigiu para fora, queria ver se eu conhecia um livro. Me trouxe o primeiro livro do Leminski com dedicatória para o Sossélla, ao que eu retruquei sobre a ironia do destino, o curso de direito, Leminski de um lado e Sossélla do outro, cada qual com o seu universo, amigos dentro do verso. Comentei que tinha o livro de poesias do Sossélla para o Leminski, e Rosa já emendou com a história de quando vieram para a casa do poeta em Curitiba.

na terra do nunca-mais

nunca mais

 

Abraçava a Rosa e me divagava nas prateleiras. No terreno cinematográfico, o cinema de John Ford, Otto Preminger, Orson Welles, Raoul Walsh, uma constelação mítica, partindo de livros e recortes, como também os filmes em si; dentro da biblioteca, uma salinha era destinada para a projeção dos filmes. Me sentia uma criança realizada, a verve bania qualquer fome ou tempo – a hora se alastrava e eu nem percebia. Mas o passo me derrubaria. Rosa se virou para o filho e pediu para ele me levar para pegar os livros do Sossélla. Eu me transformei em centopéia, novamente a criança no parque de diversão, fui abraçando os livros na tônica do coração de mãe.

deixem-me

insepulto e nu

urubu não come urubu

 

Mas a Vila Rosa Maria ainda guardaria mais emoções. Pedi para Rosa assinar um dos livros, ela foi para a mesa e no momento da data, começou a lacrimejar me dizendo: foi o Sossélla que te trouxe aqui. Hoje é a data de morte dele (18/11/18). Caí aos prantos e nos abraçamos, choramos. Eu, Rosa, Sergio, Amauri, André e Karina, fomos desconcertados pelo redemoinho da poesia. Foi o dia mais feliz da minha vida e guardo comigo cada segundo daquele dia. Ganhei uma foto do Sossélla segurando o livro originário de tudo isso, inclusive as poesias citadas estão nele: vida, carrosel da morte (1989). Hoje olho nos seus olhos e agradeço por tudo, inclusive dedico o meu livro O Futum das Birelas para essas pessoas que revoaram comigo o grande carrossel da Vila Rosa Maria.

não me descarto

de mim

 

Com amor, Vinicius.

 

*Vinicius Comoti se esconde pelo Ahú, abrolho menor de Curitiba. Costuma se debruçar sob o cinema brasileiro, como também vislumbrar em cada folha que despenca no seu caminho, a força de um verso sínico. Publicou os livros Lanzurapa (2016) e Leite com Manga (2018) e lançará em breve O Futum das Birelas pela Sendas Edições.

 

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