A construção de um passo é, antes de tudo, sair da inércia e se desequilibrar, para em seguida voltar o pé ao chão e reestabelecer o aprumo. E é entre essas ações de deslocamento que o corpo dos poemas de Reynaldo Damazio se agita, em movimentos muitas vezes tensos, diante de nossos olhos neste seu novo livro.
Ao dividir em cinco movimentos os poemas sem título do conjunto, já de início sentimos o atrito ritmado do conflito entre aquilo que está sendo retido e uma iminente explosão. A palavra incendiada caminha sob a chuva miúda, ao lado “dos seres todos metidos em/sua soberba e intransitividade:/o que se assemelha à permanência/e que para nós é dessemelhante”.
Já que andar é desarmonia, o passo firme e torto do poeta nos conduz entre imagens em choque constante, onde “a porta se abre à espera de ninguém”, num “manancial de silêncio”, em que “você procura a saída no escuro,/busca sem sucesso, só o silêncio/se move”. É uma jornada sem herói, atravessada pela negatividade o mais das vezes corpórea, por onde se vê acumular o grito no fundo da garganta: “a boca ressecada, café no/mármore esfriando a raiva,/o grito, o tiro disfarçado/na sola do pé”.
Estirada até o limite (haveria limite no tempo presente?), a voz do poema sai entrecortada e cada vez mais pesada (“não há leveza,/a cadela arrasta a pata traseira/sobre a cara morta do presente”) e intransitiva: “dizer pelos cotovelos o nada”. A realidade se impõe de modo cruel e a consciência é atravessada pela angústia de estar vivo no presente (“talvez sair pela rua/suja de pânico/sem fé/nem fissura”). E do embate travado nos poemas, tanto líricos quanto políticos, e da impossibilidade de o grito ser ouvido, “o coração selvagem se aquieta e a/sombra do que na mente é revolta/ganha cores e rituais de uma dança/estranha, agônica”. Aqui, é a lucidez do desencanto dançada no fluir dos compassos, movendo o leitor de uma experiência de estilhaçamento para convergir, aos poucos, em um lirismo de andamento ágil e não menos inquietante.
Nestes Movimentos portáteis, Reynaldo Damazio orquestra habilmente uma composição feita para ouvir de fones e que, inevitavelmente, mobiliza também o leitor a “uma flor e um grito”, como diz Herberto Helder na bela epígrafe que abre o livro.
Lilian Aquino
Inverno 2020
ISBN: 978-65-86526-38-7
184 pág.
R$ 59,70 R$ 41,79
Reynaldo Damazio
Reynaldo Damazio é editor, crítico literário e autor. Formado em Ciências Sociais pela USP. Foi co-editor do jornal “Caderno de Leitura”, da EdUSP, e colaborador do Guia Folha – Livros, Discos, Filmes, da “Folha de S. Paulo”, e das revistas “Cult”, “Arte Brasileiros”, “Entrelivros”, “Mente e Cérebro”, “Nossa América” e “Literatura: Conhecimento Prático”. É coordenador do Centro de Apoio ao Escritor do museu Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Autor de Poesia, linguagem (Memorial da América Latina); Nu entre nuvens (Ciência do Acidente); Horas perplexas (Editora 34); Com os dentes na esquina e trilhas, notas & outras tramas (Dobradura Editorial); Crítica de trincheira: resenhas (Giostri Editora), entre outros.Traduziu Calvina (SM Editora), de Carlo Frabetti.