A primeira culpa?

(Por Regina Ribeiro)

Primeiro desenrolo vagarosamente o invólucro metálico. Uma mão de cada lado, vou desembalando os dois extremos ao mesmo tempo assim, olha, enquanto o barulhinho da embalagem se abrindo vai me pondo numa espera atenta e impossível. Bato meus pés ansiosos, enquanto o pedaço de céu permanece oculto, escondido pela embalagem sobre a qual o nome escrito me faz viajar por toda a cronologia do meu ser vivo e sonhar com todas as aventuras que eu sei que ainda hei de viver.  

Vou rodopiando pelo futuro com a música de fundo cuja partitura também encontro desenhada ao lado do nome apesar de ser incapaz de dizer qual é nem como ela é e isso que eu fiz piano desde sei lá quando, talvez desde que eu era bebê. Me colocaram na aula porque o pai toca e Tônio aprendeu sozinho observando o pai, só que eu não tenho ideia do que estou fazendo na maior parte do tempo.  

Igual no balé. Todas as meninas da escola estão no balé, então também tenho que ir, só que eu  fico desenhando e, na hora de fazer um passo, todo mundo ri. Tenho vergonha porque sei que serei o centro das atenções e o alvo dos risos para todo o nosso sempre, nosso, digo, do meu eu de 8 anos e do das meninas da mesma idade e escola de dança. A cada quarta-feira bato o pé e choro, faço escândalo, digo que minha vida é horrível e injusta, que não vejo a hora de crescer um pouco para ir bem longe dali, mas a mãe não cede. O pai diz que ela é irreductível.  

A cobertura é de chocolate e eu juro de pés juntos e sem fazer figa que é o melhor chocolate que existe. O João prefere bis, vai engolindo um depois do outro igual um glutão, e o Antônio é sempre laka que é  bem enjoativo ou lancy, mas eu prefiro o meu bombom e eu vou raspando com meus dois dentes de baixo e enquanto raspo, ele vai derretendo entre meus dedos e eu lambo os dedos e, em seguida, mordo a casquinha, a parte menos boa, mas essencial pra proteger e guardar a mais gostosa, esse miolo crocante que eu acho que é de amendoim e é bem macio, uma nuvem de maciez e doçura. 

 A mãe guarda na dispensa à chaves porque sabe que depois que eles terminarem os  bis, lancy e laka deles, vão atacar os meus, até porque eu gosto de comer devagarinho, assim, em ocasiões especiais, com cuidado e sozinha, nessas tardes em que a mãe e o pai trabalham e eu não tenho nada pra fazer porque o Tônio e o João vivem doentes e eu não posso entrar no quarto infectado pra brincar com eles. Na maior parte do tempo fico olhando eles brincar de longe. Quando não estão doentes, o João prefere ficar assistindo TV e o Tônio tem muitos amigos, tá sempre na rua, prefere todo mundo menos eu. Então, eu abro um livro e abro um bombom. 

A mãe ri e diz que como meu bombom como se fosse um ritual, o pai diz que cada mordida é uma experiência e eu rio enquanto como um por um e peço pra mãe guardar os outros. Ela sempre diz que eu vou ser a única que vai ser rica porque só eu sei fazer economia. Imagino minha vida de rica e começo a pensar no que vou fazer com o dinheiro. Acho que boa parte vou doar porque vi na campanha da fraternidade esse ano que existe muita gente que precisa de ajuda para comer, chamam eles de os excluídos. Às vezes penso neles quando como meu chocolate e me sinto culpada porque a mãe diz que nem pão duro eles têm. 

A Priscilla escuta e diz que não gosta.  

Digo: como é possível, não acho que seja verdade, todo mundo gosta de chocolate, é simplesmente a melhor coisa que existe. A Priscila é minha melhor amiga e vem de uma família que por pouco não é excluída. Raciocino que se ela não gosta, é porque não deve ter provado o meu chocolate. Ela diz que não gosta porque é alérgica e eu penso o que é uma coceirazinha perto de uma experiência dessas? Ela diz que não pode, que os pais dela fazem ela repetir todos os dias antes de ir para aula «não vou comer chocolate» e me conta que tem até uma médica que sempre pede pra ela pro-me-ter não tocar, mas insisto porque não é possível, eu gosto tanto da Priscila, ela tem que saborear isso, ela nunca vai se arrepender, é simplesmente muito triste não viver essa sensação maravilhosa de estar comendo a melhor coisa do mundo. Imagino que o céu seja mais ou menos assim. Dou pra ela o tesouro, que vinha escondendo dos meninos no compartimento mais seguro da minha mochila. Pela textura, derreteu um pouquinho. Entrego para ela e aí, ela nem tenta raspar a cobertura como eu a instrui. Não, ela dá uma mordida a plenos dentes. 

 

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