Crônicas da cidade sem pandemia – Coluna Carnívoros
de Bruno Nogueira
Entrei no banheiro, equipado com o barbeador elétrico. Cumpriria o dever: nada de cabeleireiro em tempos de pandemia. Faria eu mesmo o possível e, afinal, não tenho saído. Não precisa ser perfeito.
Removi parte do cabelo do topo e do lado direito com sucesso, me sentindo um artista do pente, e eis que o aparelho decide não funcionar, mesmo sob o olhar reprovador da caixa em que acabou de chegar pelo correio. Ele faz barulho, vibra, as lâminas se mexem, mas encostá-lo no cabelo já não corta. Mudo pentes, altura, posição, repenteio, nada funciona, sabe-se lá. A diferença na quantidade de cabelo em cada lado é tanta que minha cabeça pende para um lado. Corro até o quarto, pego uma lâmina de barbear, que já usei algumas vezes na pandemia para reduzir o volume das madeixas. Ideia excelente, claro: sinto que removi o que queria sem outro percalço que a chuva de cabelos deixada pelo chão da casa. Lavei o cabelo, olhei melhor, de ângulos variados: uma falha gigante atrás, um talho na lateral que quase alivia a pressão do crânio.
Desespero. Não faço questão de perfeição, mas a essa altura surge o perigo de petrificar os poucos familiares com que tenho contato. Envio mensagem desesperada ao Pedrão, cabeleireiro amigo. Cancelo um compromisso e vou.
E foi assim que me submeti ao degradê: forçado à moda pelo destino. Me pergunto se foi inventado assim. Marina, minha namorada, tem um arrepio ao me ver, quase desmaia, mas resiste; continuamos juntos.
Só pode ser amor.