(por Eugênio Vinci de Moraes)
Eu o aguardava na calçada com uma lanterna na mão: a entrada de casa é um breu só. Ele chegou meio esbaforido, apoiou a moto no cavalete sem desligá-la, retirou da caçamba o pacote do Bek’s e me entregou. Antes que fosse embora, perguntei-lhe o nome e como iam as coisas. Cosme suspirou fundo, desligou a moto e ligamos uma conversa. Pelo sotaque, desconfiei que era baiano. Era.
Cosme trabalha pelo menos 12 horas por dia, sai cedo e volta tarde, mal vê os dois filhos, que ora estão sob os cuidados da mãe, ora do sogro. A mulher também é entregadora e toca a vida na mesma velocidade. Ele virou motoboy depois de perder o emprego numa fábrica, no CIC, onde permaneceu onze anos. Pra quem não conhece Curitiba, essa sigla é redução de Cidade Industrial de Curitiba, bairrão gigante, na região sul, que concentra as indústrias do município e cerca de 10 por centro da população da cidade.
Mas Cosme não perdeu só o emprego, perdeu também os direitos trabalhistas. Agora são ele e a moto. Seguro, fundo de garantia, férias e clts, as quatro já eram. Ele me dizia tudo isso picado por mim, que o cutucava sobre isso e aquilo, desatando-lhe a língua. A moto nos ouvia, desligada. Estava frio e a luz do celular enganchado no guidão iluminava nossa conversa. Enquanto falava, Cosme olhava e desolhava para seu patrão digital, a tela do aparelho. Ansiava pela próxima chamada.
Contou sobre a avó, que nos anos 2000 morava numa casa de sapê e que foi pouco a pouco saindo da miséria. Alcançou uma casa de alvenaria, conheceu a luz elétrica e água encanada lá por 2005. Referia-se a esses anos em um tom diferente daquele que usou pra relatar a vida de motoboy. Da avó recordava-se, nostálgico, sem dor, ao contrário da personagem do poema famoso. Apesar do infernal tempo presente, confiava que o futuro lhe entregaria coisa melhor.
Assim eu ia, guiado pela fala do bom baiano e conhecendo os círculos pelos quais sua vida se desenrolava. Destemido, disse da necessidade de seus colegas unirem-se para lutar contra aquelas condições de trabalho. Joguei gasolina na fogueira, mesmo sabendo que àquela hora um líder dos motoboys paulistanos experimentava a hospitalidade da cadeia brasileira. Precarizado ou preso, eis tudo. O celular vibrou, freando nossa conversa. Um chamado feriu a escuridão, mais uma entrega na pista. A rua tragou o Cosme sabe-se lá pra onde.
Entrei em casa e logo eu e a Adriana nos fartamos com os sanduíches de bolinho de carne trazidos pelo Cosme lá do Bek’s. Nesta mesma noite, dois outros baianos concertaram a cosmologia dessa jornada, agora pela tevê: o canoísta Isaquias Queiróz e o boxeador Herbet Conceição. Gostaria que o Cosme encontrasse um destino semelhante ao desses seus conterrâneos. E se tivesse mais tempo, eu lhe contaria, caso ele não soubesse, que os africanos escravizados oriundos da Bahia eram os mais temidos pelos senhores da época. Fica pr’outra conversa, Cosme.
Respostas de 2
Genão, justa homenagem aos baianos, os que remam e os que ralam, sem esquecer os que esmurram ou esmurraram.
Só um PS: observando a foto, fiquei com a sensação de que é uma baiana (ou uma motoqueira)
Não tinha percebido, mas fica a homenagem a elas também, as entregadoras. À mulher do Cosme, aliás, que rala como ele. Abração