Coluna – Pauleta│Bandeio

por Vinicius Comoti

 

Cada um dos seus momentos vividos transforma-se numa citation à la ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.

Walter Benjamin

 

A carroça cheia de fitas pornográficas derrapa e tomba sobre o vendedor de verduras. As viúvas se perguntam, aguçam a delicadeza dos corpos esquartejados alojando a labareda disforme numa caixa de sapatos. O risco da morte não deixa de ser um riso sem dentes, um rizoma pelado, cáries rebolando num antigo aquário sem peixes. Pulula a dentadura no chão imundo.

– mas, e o nosso conchavo?

Artimanhas na catedral profana. Se veste com a regata velha e o chinelo com mais de dez anos. Rasteja a alma no mofo dos ossos, se martela no cruz-credo, aos poucos a remela lhe causa um estranhamento que se dissipa ao acumular o ônus no canto da almofada. Pergunta para a assassina sobre a constelação dos vencidos, paparica o contrabando vigia de seu umbigo incrustado.  O passante ferido balbuciando cordéis que um dia ouvira de seu maior inimigo, para dormir, para sonhar e para dever a marmita que come estabanado.

– e a diarreia?

O óleo quente frita o labirinto, que se metamorfoseia num elevador caduco angariado em sua queda. Me estiro ao solo de uma dança na madrugada carcomida pela ira que se prolifera; o coringa que eu fui se perdeu no esconde-esconde para nunca mais encontrar o rabugento, os cômodos, a toalha que secara os cabelos da mulher que um dia lhe deu o colo e as mamas, puxou a coberta e lhe cuidou como um recém nascido.

– pelos no banheiro?

A fisgada no coração estremece a pupila, e se o vento ignora o cerol da pipa, não serão os passarinhos os derradeiros abandonados. Estou ensaboado há anos perseverando a água santa, minha urina maculada se concentra turva, ácida. Grandes tornados exigem asas fortes e o gozo cético; mordaça que com as ondas vai se abafando, alimentando o colapso da despedida, o retoque do falecido beijo.

– ambos molhadinhos!

Encosto os tragos, os pavões, as tagarelices, a flor seca sobre a tumba do eu embalsamado em mel e pinga. Serei furtado pelo imposto divino, a casinha de madeira estala em chamas. Numa semana qualquer me enganarei com o cinema exibindo a tela branca, a flatulência do crime, as acerolas que tanto me distraem no que me faço reboque de um anti-herói. Ela chega soteiramente pelo canto da porta e me pede um copo de catuaba. Um tiquinho esbugalhado vou me acobertando no deserto, reino de um príncipe fabricado na china e graduado na ponte da amizade. Leva e traz, se enfeita com o dissabor de um soco seco. Minhas lágrimas não chegam a formar uma gota, apenas lavo a louça assobiando sob os farelos que reprisam. Dêem as suas apostas, cravem os seus demônios, verifiquem se realmente estão todos dormindo. Pois a gangrena não para de exorcizar a ferida, me refazendo, abutre do meu fígado, sangue da minha lava, quizumba do meu esperma oco.

– e amanhã?   

Entre a hipnose e a gastura, o sopro e a nervura, a psicodelia e as piscadelas para o terrível monstro do armário: a traça toca a campainha e me implora um sujeito ordinário.

 

*Entre a libido das araucárias e a baderna dos fantasmas, Vinicius Comoti se esconde pelo Ahú, abrolho menor de Curitiba. Costuma se debruçar sob o cinema brasileiro, como também vislumbrar em cada folha que despenca no seu caminho, a força de um verso sínico. Publicou os livros Lanzurapa (2016) e Leite com Manga (2018). 

*Imagem do amigo Pedro Furlan

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