Um mergulho na trajetória do escritor e na concepção de seu novo livro Carcaça de alma urubu não come, publicado pela Kotter editorial
por Luiz Felipe Cunha
A literatura de Tenório Rocha não se acomoda. Seus textos não são feitos para escorregar fácil pelos olhos do leitor, mas para agarrá-lo pelo colarinho, sacudi-lo e deixá-lo com algo para mastigar depois. Em Carcaça de Alma Urubu Não Come, seu novo livro de contos, ele mergulha na oralidade, na crueza da vida e na violência cotidiana que molda seus personagens.
Nascido em Garanhuns, Pernambuco, Tenório cresceu em um ambiente onde a cultura popular era tão presente quanto o ar que respirava. O cordel, a música e a narrativa oral o conduziram à literatura, e desde então sua escrita tem sido um campo de experimentação e desconforto. Em suas obras, há um jogo entre forma e conteúdo, um desejo de explorar os limites da linguagem e de dar corpo àqueles que, muitas vezes, a sociedade insiste em esquecer.
Nesta entrevista, ele fala sobre seu percurso literário, suas influências, sua obsessão por uma literatura que incomoda e a construção de Carcaça de Alma Urubu Não Come. Uma conversa sobre palavra, memória, resistência e a necessidade de contar histórias que permanecem.
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Como começou seu interesse pela literatura? Como foi que o “bichinho da literatura” te fisgou? Você começou como leitor primeiro? Foi influência de alguém?
Não tenho um momento exato, um “insight” em que decidi ser escritor. Mas há lembranças, algumas memórias marcantes. O ambiente em que cresci teve um papel importante. Sempre respirei cultura de maneira muito ampla, uma verdadeira miscelânea. Música popular estava dentro de casa, assim como os folguedos da região — celebrações de padroeiro, apresentações de maracatu, Festa de Reis, teatro de mamulengos.
Nas feiras livres, era comum encontrar poetas populares declamando cordéis. E a literatura de cordel tem essa fusão entre o escrito e o oral. Na minha família, havia vários artistas também. Tive um tio-avô que era poeta, inclusive um dos meus livros, que ainda não publiquei, tem um personagem inspirado na história dele.
Meu primeiro contato mais próximo com o objeto livro veio dentro de casa. Minha mãe era professora de português e literatura. Como era formada em Letras, trouxe livros de autores clássicos e contemporâneos para dentro de casa. Eu fui entendendo aos poucos a dinâmica das publicações, lançamentos, o que era um livro.
Mais tarde, quando meu avô que era fazendeiro veio morar conosco por estar debilitado, meu pai construiu um espaço nos fundos de casa para ele. Depois que meu avô faleceu, aquele espaço virou uma biblioteca. Esse lugar se tornou meu refúgio, o canto onde eu me escondia para ler. Foi ali que comecei a entender o que era um conto, um romance.
Quais autores te fisgaram nesse primeiro momento?
Naquela época, eu sabia quem eram os grandes nomes. Machado de Assis, por exemplo. Também conhecia Graciliano Ramos, até porque ele era de uma região próxima à minha, Palmeira dos Índios, em Alagoas, terra também do meu bisavô, uma figura mítica, Coronel Manoel Inocêncio de Carvalho Cavalcanti.
Mas eu tinha uma grande curiosidade por escritores locais. Um amigo da minha mãe, jornalista de um jornal local, publicou um livro de poesia, e aquilo me fascinou. Eu gostava da figura do escritor, dessa ideia de alguém próximo, alguém que eu conhecia, ter um livro publicado. Isso tornava a escrita algo possível, algo real.
Além disso, tive meu primeiro contato com a produção literária ao escrever poemas. A poesia, para muitos que começam a escrever, parece ser o caminho mais natural. Brincava com rimas, montava livretos e até escrevia cordéis. Mas, depois, fui percebendo que a poesia é um negócio muito difícil.
E como foi seu primeiro contato com a prosa?
Demorei para me aventurar na prosa. Eu tinha uma angústia com ela. Pegava um romance e ficava tentando entender como alguém conseguia escrever 300, 500 páginas de forma coesa e envolvente.
Com uns 15 anos, comecei a ler Graciliano Ramos e Machado de Assis, mas não ia muito fundo. Mas meu primeiro estranhamento real veio com Guimarães Rosa. Peguei um conto dele e fiquei chocado com a linguagem. Era muito diferente do que eu estava acostumado. Eu sentia que aquele universo me interessava, mas não consegui me aproximar imediatamente.
Anos depois, já em São Paulo, resolvi encarar Grande Sertão: Veredas. Fui lendo aos poucos, remoendo cada frase. Guimarães Rosa foi uma descoberta “tardia” para mim, mas transformadora.
E o seu primeiro livro? Como foi essa transição para publicar?
Meu primeiro livro publicado foi Talagadas, em 2016. Mas antes disso, eu já fazia livretos artesanais, imprimia, grampeava e vendia baratinho para amigos e familiares.
Demorei para lançar um livro porque tinha a tal da síndrome do impostor muito forte. Sempre me perguntava se estava pronto, se era capaz. Via outras pessoas publicando cedo, e aquilo me causava uma inveja criativa.
Mas Talagadas foi uma decisão consciente. Quis fazer um livro que fosse mais do boteco do que da livraria. Ele tem um formato de literatura rápida, para ser lido entre um tira-gosto e outro, em pequenos goles literários. Foi um livro que pegou muito bem e até hoje vende em várias plataformas no mundo inteiro.
Depois de Talagadas, quais foram os próximos livros?
Depois veio Ô de dentro!, uma novela que lancei em 2017. Esse livro me colocou em um novo patamar, porque mostrou que eu podia transitar bem na prosa. Em 2019, lancei Fígado, um livro de poesia mais visceral, escrito no calor do momento político do país.
Depois veio A última parede do labirinto, publicado pela Patuá em 2022. Esse foi um romance mais experimental, com uma estrutura fragmentada e uma exploração da linguagem. Foi um livro que trabalhei por muitos anos antes de lançar.

E como surgiu Carcaça de alma urubu não come?
A frase “Carcaça de alma urubu não come” surgiu primeiro como um tweet meu, há anos. Depois, um dia, vi uma matéria sobre cortadores de cana e o impacto físico que o trabalho causa. Fiquei impressionado ao ver um rapaz de 28 anos com o rosto de um homem de 50. Essa imagem ficou na minha cabeça.
A partir disso, escrevi um conto, um fluxo de consciência que retratava a violência e a brutalidade do trabalho no canavial. Com o tempo, fui reunindo outros contos que eu já tinha e escrevendo novos. Quando vi, tinha um livro.
Como você enxerga Carcaça de alma urubu não come dentro da sua obra?
Acho que esse livro consolida meu trabalho na prosa. Ele mostra diferentes facetas da minha escrita, explora a oralidade, a psicologia dos personagens.
Cada conto tem vida própria. E acho que o livro traz um estranhamento necessário na literatura. Não quero contar histórias de forma óbvia. Quero que o leitor se sinta desconfortável, que se questione, que veja os personagens como seres vivos.
Você tem um conto preferido no livro?
“Carcaça de alma urubu não come” é um conto muito forte para mim, por toda a violência e o ritmo que ele tem. Mas gosto muito também do “Mita”. É uma personagem que poderia facilmente ganhar um romance.
Você comentou que literatura e existência são inseparáveis para você. Pode falar mais sobre isso?
Para mim, escrever não é apenas um ofício, é uma maneira de existir. Eu me significo como pessoa por meio da literatura. Não consigo me desconectar disso.
A escrita, de certa forma, tem um aspecto quase psicanalítico. Depois que comecei a estudar psicologia, percebi que a literatura tem muito a ver com um processo de análise. Escrever é um jeito de emergir materiais do inconsciente, de colocar no papel coisas que, às vezes, nem sabíamos que estavam ali.
E a literatura, no fim das contas, é sempre sobre os mesmos temas: morte, desejo, memória, perda, falta. O que muda é a forma de contar essas histórias.
Falando em forma, seus textos têm um forte apelo oral. De onde vem essa escolha estilística?
A oralidade sempre esteve presente na minha vida. A cultura da minha infância foi muito oral: recitais de cordel, poetas populares declamando versos, minha avó contando histórias e cantando aboios, meus tios reunidos aos domingos para contar causos e piadas.
Acho que por isso meus personagens falam muito. Eles têm vozes fortes porque são gente. Eles suam, cospem, gritam, cochicham. Tento dar a eles uma presença real na página.
Você mencionou que literatura que escorrega fácil não te interessa. O que isso significa?
Acho que a literatura precisa causar algum estranhamento. Se o texto é lido e imediatamente esquecido, algo está errado.
Quando leio um livro, gosto de sentir que estou sendo desafiado, provocado. Foi assim com Grande Sertão: Veredas, por exemplo. Eu lia e sentia medo de continuar, porque cada frase tinha algo que eu queria absorver por completo e nem sempre tinha repertório pra isso.
Então, quando escrevo, tento criar essa experiência também. Quero que o leitor se perca um pouco, que tenha que parar e reler, que sinta a palavra de um jeito diferente.
Os personagens de Carcaça de Alma Urubu Não Come são muito vívidos, quase palpáveis. Como você os constrói?
Eu gosto de pensar que os personagens precisam respirar. Eles não podem ser apenas marionetes de um narrador.
Para isso, tento evitar descrições excessivas. Quero que o leitor imagine quem eles são pelo modo como falam, como se movem, como agem. Acho que quando você dá espaço para o leitor preencher as lacunas, o personagem se torna mais forte.
E tem outra coisa: gosto de personagens que surpreendem. Se um personagem pode ser previsível, não vale a pena escrevê-lo.
Seu livro anterior foi um romance, A última parede do labirinto. Como foi a experiência de voltar aos contos?
Foi um exercício muito interessante. O romance exige fôlego, exige que você se comprometa com uma estrutura longa e bem estruturada pra segurar o leitor. Já o conto é como um susto, um assombro. Ele precisa ser preciso, direto, e não pode sobrar nada. O conto é.
Em Carcaça de alma urubu não come, tentei misturar contos curtos e longos, trazer ritmos diferentes. Eu queria que o livro tivesse uma respiração própria.
E quais são os próximos passos?
Tenho um romance em andamento, Eu não amo os homens. Ainda falta muito para terminá-lo, mas é um projeto no qual estou muito envolvido. Mas aviso: eu sempre posso mudar de título, de estrutura. De repente vira uma novela, um conto ou volta para a gaveta. Meu processo é assim. É a escrita que manda em mim e não o contrário. O livro em si só vem se ele quiser.
E agora estou focado no lançamento de Carcaça de alma urubu não come, que deve acontecer primeiro na cidade em que resido atualmente, Três Corações, nas Minas Gerais.
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Carcaça de alma urubu não come
Autor: Tenório Rocha
Total de Páginas: 96
Formato: 15X21 cm
ISBN: 978-65-5361-397-3
Disponível aqui
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