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Daniel Osiecki | Curitiba – PR

O que se faz, geralmente, quando se ganha um diploma de graduação? Ou quando um escritor ganha um notável prêmio internacional e uma vultosa quantia em dinheiro? Ou ainda quando se trata as pessoas ao seu redor da pior forma possível, porque a linguagem que conhece não é outra senão a do impropério, a do porrete?

Esses questionamentos, por mais banais que pareçam, contêm toda uma dialética ontológica que vai permear o acidentado, lisérgico e alcoólico périplo de Pingo, o protagonista de O diabo na rua (2022, compre aqui), do curitibano João Lucas Dusi, seu primeiro romance.

Temos em O diabo… um personagem que é um cocainômano ególatra, frágil, autodestrutivo e extremamente detestável; e é exatamente por isso um grande personagem, como é comum em grandes livros. Pingo pode fazer parte da galeria de Brás Cubas, Ferdinand Bardamu, Tristram Shandy, Meursault e tantos outros.

A odisseia onírica e etílica de Pingo começa com o jovem e niilista (será que é mesmo?) escritor recebendo a notícia do prêmio literário que ganhou e dando especificações anatômicas muito diretas do que fazer com seu diploma de Letras. É claro que muito do que Pingo diz ou faz não pode ser levado a sério, mas suas neuras e delírios servem de contraponto a uma possível estética da normalidade, tão buscada assim como repelida por Pingo.

Depois de ganhar um grande prêmio com meu segundo livro, enfiei o diploma no cu. Literalmente. A maior serventia para o canudo foi ter removido o excesso de fezes de meu ânus, em uma manhã particularmente agradável na qual eu tinha acabado de receber a notícia da vitória. Decidi: vou limpar o cu com meu diploma de professor de português. Dito e feito. Tomei café preto, fumei um cigarro e fui cagar, carregando o atestado de êxito comigo. Todo estudante de letras é um retardado, um verme. Só não é mais desprezível que o aspirante a jornalista. Ou que o editor de livros e também de periódicos, que constituem a raça mais estúpida da Terra. A esta altura do campeonato, qualquer recurso literário é batido. É por isso que peço que me deixem em paz, por obséquio. Por gentileza. Pelo amor de Deus (p. 10).

Cenário noir e referências

A partir dessa intro, Pingo começa de fato seu processo de anular-se. O título aqui é de extrema importância para compreender que a narrativa trata-se de uma travessia (metafórica, naturalmente) e tal qual Riobaldo, que encontra sua Diadorim de forma tortuosa, Pingo se depara com Melissa, a sua esfinge que a qualquer vacilo pode devorá-lo. As portas de Tebas na narrativa de Dusi são as biqueiras e inferninhos do centro de Curitiba, botecos fuleiros da periferia, traficantes e prostitutas que povoam esse cenário noir.

Vale ressaltar que a referência roseana em O diabo na rua é bastante sutil. O demônio com quem Pingo se encontra é algo muito mais profundo do que linhas de cocaína, ataques de fúria contra desafetos e uma misoginia atroz. O demônio aqui é a própria condição humana, suas agruras e pesadelos, que, mesmo em poucos momentos de lucidez, faz o protagonista partir para a extinção, para a agressão (muitas vezes gratuita) que reforçam, mais uma vez, um dos motivos por Pingo ser esse Raskólnikov tupiniquim, mas sem a busca por redenção. Pelo contrário, Pingo vai direto de encontro ao abismo, mesmo sendo um ser repleto de dúvidas e medos.

Mesmo discordando de algumas escolhas do autor, como certo exagero em citações e referências, e também no uso do vocativo utilizando em excesso os nomes das personagens, o que torna alguns diálogos um tanto artificiais, O diabo na rua é um livro denso, sólido, forte, com um belo trabalho de linguagem, como deve ser um grande romance. Dusi acertou a mão na primeira tentativa.

Daniel Osiecki nasceu em Curitiba (PR), em 1983. Publicou os livros Atmosfera das grutas (2023), Veste-me em teu labirinto (2021), 27 episódios diante do espelho (2021), Fora de ordem (2021), Trilogia amarga (2019), Morre como em um vórtice de sombra (2019), fellis (2018), Sob o signo da noite (2016) e Abismo (2009).

João Lucas Dusi é autor do romance O diabo na rua (compre aqui) e dos contos de O grito da borboleta (2019). Trabalhou nos jornais de literatura RascunhoCândido.

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