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Cássio não se lembrava da última vez em que tinha pisado num ônibus. O corpo cansado achou relaxante a vibração do veículo, e depois de tanto tempo suportando a umidade e as chuvas numa barraca onde mal conseguia ficar de pé, era bom se abrigar num lugar mais firme e resistente. De pé no corredor, fez o sinal da cruz, e observou de soslaio a bunda de uma mulher que colocava a mala no compartimento superior, mas ela se sentou ao lado do marido.

Nos últimos dias ele tinha se acostumado a ter consigo pouca coisa. Além de telefone e carregador, levava apenas escova de dentes, toalha, e duas mudas de roupa, que pedia a alguma mulher no grupo que levasse na lavanderia próxima toda semana. Muita gente ali tinha passado a depender dos benfeitores que pagavam os ônibus, mandavam comida, banheiros químicos; felizmente esse não era o caso dele, que tinha casa e carro próprios, para onde, em algumas ocasiões, voltava e dormia um sono mais reparador. Na maior parte do tempo ficava ali — tudo era longe demais, e no acampamento, além da companhia de pessoas com pensamento parecido, havia uma ou outra mulher que talvez conseguisse comer. Também gostava de acreditar que, ao ficar ali e fazer o possível para encorajar o movimento, se sacrificava de alguma forma pelos membros do grupo que não tinham onde cair mortos, empregos perdidos, famílias abandonadas. Sentia-se heroico, como se portador de uma missão empreendida pelo bem dos outros.

Da própria família tinha se afastado; mal conversavam hoje em dia. Decidiu passar o Natal com eles em Lagoa da Prata, mas se arrependeu amargamente — o sobrinho, seu preferido, o atacara numa ceia de Natal e começara a rir feito um demônio, levando ao rosto as mãos que pingavam do próprio sangue e saindo dali coberto de vermelho, as roupas marcadas, gotas escuras manchando a mesa e se diluindo na cerveja derramada. O resto da noite, ficaram em cômodos separados. Sem dormir, Cássio pegou a estrada na manhã seguinte e foi direto para o acampamento. Gostava demais daquele menino, mas as más companhias, especialmente aquele amigo veado, talvez até alguma possessão, tinham mudado a personalidade dele, e não parecia ter volta. Dia primeiro, o viu postando foto em Brasília com a mão enfaixada no ar e um boné do MST na cabeça. Como podia? Pensou em deixar de acompanhar as redes dele, mas mudou de ideia.

À noite, se sentava com os outros no acampamento que, nos últimos dias do ano, chegara a ser deprimente. Quando alguém levantava esperança, todos concordavam, mas muitos, ele imaginava, já duvidavam tanto quanto ele e seguiam adiante por inércia, ou porque já tinham dado tanto de si que era impensável recuar agora, seja qual fosse o resultado. Eram sustentados, em grande parte, uns pelos outros. Durante os dias ficavam à sombra das tendas, alimentados quase sempre por marmitex, conversando sobre os acontecimentos em que acreditavam e sobre aqueles de que duvidavam. Na chuva, visitavam com frequência as barracas uns dos outros, e mesmo que as mulheres tenham aprendido a não convidá-lo, Cássio às vezes fingia errar de barraca, e se encontrasse alguma das mais passivas sozinha, tentava pegar ou pelo menos dar alguma apalpada. No frio, se sentava com o grupo num círculo de cadeiras de praia ao redor de um aquecedor elétrico. O aquecedor, as luzes da tenda e mais alguns confortos eram alimentados por uma longa extensão que buscava energia no interior do quartel. Trocavam confidências, falavam das dificuldades, das famílias.

Será que esse seu sobrinho não era veado também?

 

Olha, Josué.

Se você não fosse meu parceiro aqui desse acampamento e eu não soubesse que você é uma pessoa de bem, eu levava a mal essa pergunta.

Mesmo quando tentava evitar, a voz de Cássio ecoava por todo o acampamento. Josué mostrou as palmas das mãos.

Quê isso, Cássio, jamais, sem ofender. É que eu não conheço o menino, e o jeito que você falou a história, a reação dele…

Pensar nesse assunto exigia que Cássio lidasse com emoções que não sabia aceitar. Queria que Treino fosse seu filho. Pensava em si mesmo como o único exemplo de homem que o garoto tinha, e sentia que tinha falhado com ele de alguma forma, mas não era capaz de colocar isso em palavras. Menos ainda admitiria que, se Treino fosse mesmo gay, isso não mudaria em nada o que sentia pelo sobrinho. Em algum lugar emocional, distante da linguagem, sabia disso; ainda assim, via na mera sugestão de Josué uma ofensa sem tamanho.

Esse povo da esquerda mexeu com a cabeça dele.

Naquele dia, Josué colocou uma das mãos em seu ombro — Cássio não gostava que homem lhe encostasse, mas esse era o nível de intimidade a que tinham chegado. Josué disse que isso mudaria. A ordem chegaria logo, só mais três dias, tudo ia mudar, haveria revelações, ordens, as tropas se mobilizariam. Já havia algumas semanas de desilusões acumuladas, mas uma pequena parte dele conseguia acreditar. Conforme os dias passavam, a fé diminuía. Muitos já tinham abandonado o acampamento. O próprio Cássio, em cada visita que fazia a sua casa, pensava com mais força que, talvez, devesse ficar lá.

Mas agora, no ônibus que saía rumo a Brasília, voltava a sentir alguma esperança. Vira vários ônibus saindo, muita gente. A barraca tinha ficado para trás; só levou a mochila e o cooler velho de guerra, cheio de cerveja. Levava também um frasco metálico de cachaça, pra não faltar coragem.

As cortinas do ônibus seguiam fechadas, e ninguém via além dos limites estreitos que ele proporcionava. Alguns não conseguiam dormir de ansiedade. Uma mulher do outro lado do corredor orava intensamente, de olhos fechados. Cássio, recostado de lado em seu banco, buscava adivinhar o formato de seus peitos, e observava o modo como eles acompanhavam a vibração do ônibus ou os movimentos mais convulsivos da oração. Não reparou se ela tinha aliança, mas ao lado dela dormia outra mulher, então não fazia diferença. Com os olhos colados aos peitos da mulher e uma mão entre as pernas, dormiu.

***

Quando acordou, a chuva tinha passado, o calor era grande, e havia cantoria no ônibus. A mulher dos peitos estava de pé ao seu lado, estendendo um sanduíche. Reparou com tristeza na aliança, mas como, até então, nenhum homem presente parecia ser dela, aproveitou para encaixar uma leve carícia na mão que lhe entregou o sanduíche. Ofereceu uma cerveja.

Obrigada, eu não bebo.

O que dificultava muito as coisas. O cooler, até então fechado, mantivera a cerveja bem gelada. Cássio bebeu com gosto a primeira e ofereceu aos companheiros.

Companheiro não! Parceiro.

Alguns já estavam bebendo, outros disseram que beberiam mais tarde, Josué e dois colegas do acampamento aceitaram — Felipe, que aos 35 anos era o mais novo do grupo, e Danusa, uma loira que Cássio conseguiu comer uma noite, mas nunca mais deixou que ele chegasse perto, mesmo ele tentando diariamente. Verdade que era meio gorda, mas tinha uma bunda bonita, e ali não se podia escolher muito.

A cantoria, pelo que percebeu, fora estimulada pela JBL de Felipe, que o dono ativara a todo volume para animar o pessoal. Funcionou: muita gente cantava junto o sertanejo que dominava o ônibus. Tocava também alguma música gospel, mas pouca coisa, que a maioria não conhecia muito além daquela do Régis Danesi. Aos poucos, a conversa começou a girar em torno da chegada em Brasília.

Nossa, eu tô nervosa demais.

Calma, meu bem. Cássio deixou a mão cair sobre a coxa de Danusa, que a empurrou para longe de imediato. Vai dar tudo certo.

Será Cássio? Tanto tempo sem acontecer nada, o presidente calado, como é que isso vai dar certo?

Pode confiar Danusinha. Você viu que esse não era o único ônibus saindo de BH, tem muitos de lá e de tudo que é lugar também. E o capitão não falou nada em público, mas a gente tem que entender… eu aposto que ele quer é se assegurar. Se brincar já tá em Brasília mas só vai aparecer na hora H.

Quê isso, Cássio, ele nem tá no Brasil.

Não Danusinha, isso é o que ele quer que todo mundo pense. Lembra que ele é um cara esperto. Ele sabe que tem gente infiltrada nos grupos, então não dá pra espalhar um segredo desses.

Enquanto falava, Cássio contornava o corpo de Danusa com o braço direito, como quem não quer nada. Quando ela, testa franzida, considerava esse último comentário, ele continuou.

E falando em dar certo, Deusinha, por que você não quis mais nada comigo hein? Senta aqui do meu lado.

Ai Cássio, pelo amor de Deus!, você não para nunca né!

E quis voltar para sua cadeira no ônibus, mas foi atingida por um tapa forte na bunda quando se afastou. Cássio riu; achava graça o olhar nervoso que ela devolvia. Quis se sentar ao lado da mulher dos peitos, mas ela estava longe, e Durval, líder do acampamento, pediu que todos se sentassem onde estivessem. Queria transmitir algumas informações.

Pessoal, presta atenção. A gente vai chegar daqui a menos de meia hora.

Esperou que a gritaria diminuísse.

Não pode entrar veículo nas proximidades do planalto, mas pedestre pode, o Ibaneis cancelou essa restrição pra gente.

Mais gritos.

Pessoal, pessoal!, concentra, por favor, se não eu não consigo falar!

A gente vai descer a pé. Deve ter alguns PMs escoltando a gente até lá perto, um pessoal da guarda vai deixar a porta do palácio aberta, aí é só entrar.

Que foi Felipe?

A gente pode fazer o que quiser? Tipo, se encontrar o Xandão lá posso dar uma coça nele?

Risos. Durval continua, ainda com o sorriso no rosto.

Acho que todo mundo sonha com isso, né, Felipe?, mas não vai ter ninguém lá. Hoje é domingo, então vai ser só o pessoal da segurança.

A maioria sabia disso, mas alguns murcharam um pouco, e outros pareciam aliviados.

Então pode ficar à vontade, faz o que quiser, não vai ter ninguém lá mesmo…

E não arrisca acontecer nada com a gente, né? Depois de invadir, e tal.

Durval sorri condescendente, como quem acha bonitinha a inocência da pergunta.

Davi, fica tranquilo. Seu tio não é da ativa? O pai do Felipe é capitão, o Adriano mesmo, aqui, é coronel… e eles sabem. A gente sabe que tem um PM ou outro que vai querer ir contra a onda, uns infiltrados, talvez, mas ninguém vai meter bala no sobrinho do chefe. Até a esposa do Villas Boas vai estar lá, acha que alguém quer correr o risco de acertar essa mulher? Fica tranquilo.

Pouco depois, o ônibus parou. Cássio pôs na cintura o frasco de cachaça, e apalpou o canivete no bolso.

Via das dúvidas.

Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, mestre em Estudos Literários pela UFPR e autor da coletânea de contos A síndrome do impostor. Grito distante, que descreve eventos ocorridos entre 1995 e 2023, é seu primeiro romance.

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