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Mais uma vez, escolho escrever sobre a obra da escritora Conceição Evaristo. Nessa oportunidade, volto à prosa da escritora mineira para discorrer sobre o conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”, publicado no volume Insubmissas lágrimas de mulheres (Malê, 2020).

Nessa antologia, há um breve prólogo, em que a narradora, que também atua como personagem em todas as narrativas, explica brevemente, num exercício delicado de metalinguagem, o seu gosto em ouvir as histórias das mulheres, todas vítimas de muita opressão e de algum tipo de violência, seja da família ou do marido ou companheiro ou mesmo de pessoas estranhas. Não descarta, no entanto, a possibilidade de que algumas histórias possam ter sido inventadas. Ademais, evoca a liberdade (ou o desconserto, dependendo da situação em que nos encontramos) a que os caminhos da memória podem nos levar.

Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. […] Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas os de quem conta. E quando em mim uma lágrima se faz mais rápida […] deixo o choro viver. […] Essas histórias não são totalmente minhas, mas quase me pertencem. […] Invento? Sim, invento, sem o menor pudor. […] Mesmo as reais quando são contadas.[…] O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso (EVARISTO, 2021).

A narradora quer ser a voz de outras mulheres negras, as vozes abafadas, esquecidas, deixadas de lado, silenciadas. Não pretende redigir narrativas em que “a representação dos fatos se constitua como uma verdade absoluta. Deseja tecer uma narrativa em que o jogo entre a memória e o esquecimento se configure de forma singular” (OLIVEIRA, 2022), pois como elucida Paul Ricouer (2007), “o dever da memória consiste essencialmente em dever de não esquecer. Assim, boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer”. Daí a importância do “jogo” entre memória e esquecimento, conforme assinala Harald Weinrich, em Lete, arte e crítica do esquecimento (2001) “não se encontrará então nenhum brilhante artista da memória que não tenha a nostalgia de um esquecimento”.

Neste “jogo”, a narradora, que está presente também como personagem, nomeia treze histórias, todas com nomes de mulheres. São mulheres corajosas e aguerridas que enfrentam toda a sorte de adversidades. Escolhi o conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”. Nessa narrativa, surgiu a hipótese de que sua interlocutora não tivesse nada de novo para dizer “até duvidei de que ela tivesse alguma história para contar, ou melhor, cheguei a pensar que seu relato não traria novidade alguma”. Maria começa afirmando que a escolha de seu nome se deve “ao catolicismo exagerado” da família, que, na verdade, se chamaria “Maria do Rosário Imaculada das Graças Conceição dos Santos”, que era a intenção dos familiares e que só não se concretizou porque o padre “foi quem achou exagerado o sentido fervoroso de meu nome e não permitiu”.

Logo no início da narrativa, Maria admite que de Imaculada não tem nada, pois não acredita em pecados e subverte o dogma cristão quando faz uma declaração a respeito do seu nome e a relação deste com Maria, a mãe de Jesus Cristo: “Tenho fé em minha protetora, a ‘Maria’, mulher de fibra, que suportou ser a mãe do Salvador. A ela dou o meu voto, o de crença, não o de castidade….”.

Em tom jocoso, Maria do Rosário “pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de um pouco de sua vida”, na qual conta uma história, infelizmente não muito rara num país como o Brasil, com imensa desigualdade social. É uma história de sobrevivência.

Aos sete anos, aproximadamente, em certa ocasião, Maria estava sentada com a mãe e mais dois irmãos, do lado de fora da casa ondem viviam “Era uma construção pequena, mas abrigava muitos”, não apenas o núcleo familiar, mas também outras pessoas, tais como os avós, tios, primos etc. De repente, surgiu um jipe com um “casal estrangeiro (depois, com o tempo, descobri, eram pessoas do sul do Brasil)”. O casal solicitou permissão para passear com as crianças de carro. Os adultos permitiram “Era tão raro passar por ali algum automóvel”. Foram dadas algumas viagens e Maria e o irmão ficaram para a última. Entretanto, as crianças e aos adultos não suspeitavam de que se tratava de um sequestro.

Subimos contentes e o carro aos poucos foi ganhando distância, distância, distância… Aflita e temerosa, pois começava a escurecer, pedimos ao moço  e moça para fazer o caminho de volta. Eles apenas sorriam e continuaram adiante. Depois de muito tempo, noite adentro, eles pararam o jipe, puxaram violentamente o meu irmão, deixando o pobrezinho no meio da estrada aos gritos e continuaram a viagem comigo, me levando adiante.

Após ser sequestrada e de desconhecer o paradeiro do irmão, Maria não tinha consciência canaltaronja.cat do que realmente havia acontecido. “na minha inocência, divagava entre o temor e a confiança. Nunca tinha escutado sobre casos de roubo de criança. Em casa, não tínhamos medo de perigos reais e sim de imaginários. Mula sem cabeça, lobisomem, almas do outro mundo…” As crianças, certas de estarem num ambiente de segurança ao lado da família, o medo do que era real, ou seja, o medo dos adultos estranhos, não fazia parte do seu imaginário.

E foi preciso que passassem muitos dias e muitas noites de viagem, nas estradas, para que eu entendesse que a moça e o moço estrangeiros tinham me tomado de meus pais. E, quando alcancei a gravidade da situação, por muito tempo pensei que fosse acontecer comigo, o que, muitas vezes, escutei os mais velhos contarem. As histórias de escravidão de minha gente. Eu ia ser vendida como uma menina escrava.

O temor de Maria era se tornar uma menina escravizada, uma vez que as histórias da escravidão estavam na memória dos mais velhos e estes a transmitiram aos mais novos. Entretanto, não foi o que ocorreu, pelo menos não nos moldes como imaginava, porém, o tratamento dado à Maria assemelhava-se, em alguns aspectos, a condições análogas à escravidão. Viveu alguns anos com o casal que a sequestrou, tentou fugir, na esperança de reencontrar sua família, mas foi levada novamente para a mesma casa, onde nunca foi perguntada sobre sua origem. “Nos primeiros tempos, sofri muito, chorava dia e noite” Importante ressaltar é a questão da tentativa de despersonalizar a menina.  Era tratada como alguém que não tinha nome. “Jamais perguntaram meu nome, me chamavam de ‘menina’. (Esta condição a que a menina foi submetida nos remete a outro conto da Literatura Brasileira, Negrinha (1994), de Monteiro Lobato, no qual, a menina abandonada por adultos, na fazenda, logo após a Abolição da Escravatura, era tratada apenas como “Negrinha” e muito maltratada por uma mulher cruel, cuja personalidade se caracterizava por um falso moralismo e falsa religiosidade.)

Maria, portanto, era tratada como “ninguém”, mas ainda assim foi alfabetizada. O tempo passou e a menina teve muito receio de esquecer as pessoas de sua verdadeira família “eu via minha gente como um desenho distante. […] A deslembrança de vários fatos me dói. Confesso, minha história é feita mais de inventos que de verdades…” Maria cresceu solitária na casa dos sequestradores, sabendo que estava muito distante de sua cidade. Quando foi presenteada com um rádio, começou a ter uma real noção da região onde se encontrava. “Descobri que o casal não era estrangeiro, eu estava no Brasil, bem no sul, quase na Argentina, aí sim, outro país”. Já havia quase oito anos que Maria tinha sido tirada dos seus pais. “Eu sabia que ali eu já tinha feito sete aniversários, longe dos meus”. Perto de completar oito anos,  a menina foi levada para morar com uma tia do casal, pois os cônjuges haviam decidido se separar. Maria aprendeu, forçosamente e como meio de defesa a controlar suas emoções, “Chorei para dentro, mais uma vez. Eu sabia que não estava indo para minha cidade, Flor de mim”. Nesta segunda residência, Maria foi submetida a uma condição semelhante a de uma menina escravizada, aos oito anos.

Eu trabalhava imensamente, aprendi a cozinhar, a passar, e a cuidar das crianças. […] Aguentei esse inferno durante sete anos e só tinha um objetivo: o de juntar dinheiro e voltar para Flor de mim. Mas o tempo foi passando, Dali, saí para outra casa e mais casas. Nunca mais soube do casal que me roubou de meus pais. Nunca entendi qual foi a intenção deles. […] Um temor me perseguia. Será que a cidade Flor de Mim ainda existia? Será que os meus ainda existiam?

Um sentimento de não pertencimento se apoderava de Maria que agora já se aproximava da idade adulta. Estava há muitos anos longe de sua cidade e de sua família. O não pertencimento caracteriza-se por uma sensação de desenraizamento, de solidão, de não pertencer a lugar nenhum. Esse sentimento é observado de forma pungente em “ e/imigrantes de todos os matizes, incluindo nesse amplo espectro todos os tipos de exilados, são atingidos por essas contingências em escalas variadas, em circunstâncias as mais diversas” (RIBEIRO-DE-SOUSA, 2021) e aqui acrescentamos: também nos homens e mulheres dos povos africanos que foram traficados para o território brasileiro, durante séculos.

Com o passar do tempo, Maria, já adulta, saiu da casa onde estava. “Namorei, casei, descasei, algumas vezes. Filhos, nunca tive […]Não queria ter família, tinha medo de perder os meus”. Mudou-se de cidade várias vezes,  “tinha a impressão de que eu era vigiada”.  A cada cidade para onde se mudava, se sentia mais próxima de Flor de Mim.

No desfecho da narrativa, Maria do Rosário relata que conseguiu retornar, “aqui estou há vinte anos. Veja, moça, como isso se deu”. O retorno foi essencial para Maria, porém a memória do dia do sequestro a perseguia. “A lembrança do dia em que fui roubada voltava incessantemente”. Em sua cidade, num ciclo de palestras sobre “Crianças desaparecidas” a que foi assistir, parecia que estava escutando a sua história, em cada relato que ouvia. Ao sair da sala, pensou ouvir uma voz que lhe era familiar. ‘Era o tom de voz da minha mãe, a síntese dos sons de uma curta infância, junto aos meus”. Essa mulher contava uma história que era a de Maria do Rosário Imaculada dos Santos.  “A história de uma irmã que ela nunca conhecera, pois tinha sido roubada”. No entanto, Maria não conseguia se desviar de seus pensamentos que apenas mostravam a imagem do jipe que a levara um dia e do irmão abandonado na estrada. Tomada por esse delírio, desmaiou. Quando acordou, estava diante de sua irmã. “A nossa voz irmanada no sofrimento e no real parentesco falou por nós. Reconhecemo-nos. Eu não era mais a desaparecida.[…] Sobrevivemos, eu e os meus, desde sempre”.

No que diz respeito à questão da sobrevivência, é fundamental que voltemos dois séculos atrás. Essa frase possui uma carga semântica que vai muito além do conto.

Como é sabido, os ex-escravizados, após a Abolição, não ocorreu nenhuma política de reparação, o que impossibilitou uma relação de igualdade com os imigrantes europeus que para o Brasil vieram e foram beneficiados com o recebimento de terras e trabalho.

Transportando-nos para século XXI, a condição da maioria dos negros e negras no país ainda é muito precária. De acordo com Lúcia Regina Brito Pereira, doutora em História, integrante da Organização de Mulheres Negras – Maria Mulher, na verdade, houve uma semiabolição. “A gente continua buscando a conclusão dessa abolição que ainda não ocorreu, que pese todas as mudanças, as ações que foram feitas ao longo desses 132 anos, estamos em outro patamar, mas ainda nos falta muito naquilo que diz respeito a educação, saúde, a infraestrutura, o trabalho” (BRASIL DE FATO, 2020).

Escritora premiada e com livros traduzidos, Conceição Evaristo, para chamar a atenção acerca da ausência de representatividade de escritoras negras, concorreu a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 2018. Recebeu apenas um voto. Num programa de televisão (Roda Viva, TV Cultura, 2021), Evaristo falou sobre o ocorrido: “Com todo respeito que eu tenho à Academia, mas ela tem que tomar cuidado, porque senão perde o bonde da história. Eu tenho uma resposta [sobre se candidatar novamente] fechada sobre isso, eu acho que como da primeira vez, a Academia não aceitaria a minha candidatura. Eu prefiro pensar que outras mulheres negras, outros homens negros, sujeitos indígenas, outras representações literárias deveriam se candidatar. O que eu tinha de fazer eu já fiz”, destacou a escritora.

O conto “Maria do Rosário Imaculada do Santos”, assim como os demais contos da antologia Insubmissas lágrimas de mulheres é um “retrato de sororidade negra, de uma aliança e empatia entre mulheres” (AMARO, 2020), que relatam suas histórias conduzidas pela memória e pelo senso de resistência. A frase que encerra o conto de Conceição Evaristo poderia ser dita pelas mulheres negras e pelos homens negros no Brasil: “Sobrevivemos [resistimos], eu e os meus, desde sempre”.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira. Autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

 

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