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Quem contou os tiros que mataram Mineirinho,
quem conta os dias da morte de Marielle
[e Anderson Gomes]?
(CAVALCANTE et al, 2020).

Quando, em 1977, Clarice Lispector (1920-1977) foi entrevistada por Júlio Lerner, na TV Cultura, a escritora afirmou que, de sua obra, os textos que eram de sua preferência e mereciam destaque, sobretudo, eram os contos “O ovo e a galinha” e “Mineirinho”. Sobre o último, foi enfática: “uma coisa que escrevi sobre um bandido, um criminoso, chamado Mineirinho que morreu com treze balas, quando uma só bastava[…]” (TV CULTURA, 1977).

A narrativa, publicada em 1969, representa a história de José Miranda Rosa, cujo apelido dá nome ao conto e que havia fugido da prisão. O fugitivo foi fuzilado com treze tiros pela polícia, fato que despertou a atenção das pessoas e se tornou foco de divulgação dos jornais da época. “Mineirinho foi encontrado morto no Sítio da Serra, […] com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, […] dados à queima-roupa[…]” (DIÁRIO CARIOCA, 1º de maio de 1962).

Mineirinho foi alvejado com muitas balas, o que sugere o propósito de execução. A narradora do conto se mostra perplexa com o assassinato brutal: “No entanto a primeira lei, a que protege o corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás” (LISPECTOR, 2016).

Diante desse assassinato, emerge um forte sentimento de compaixão: “[…] devo procurar por que está doendo em mim a morte de um facínora” (LISPECTOR, 2016).  “Eu me transformei no Mineirinho massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência” (TV CULTURA, 1977). Ou seja, eu sou o outro, o que fere o outro me atinge da mesma forma. A narradora faz uma dura crítica à justiça, que humilha ao invés de reparar e também ao nosso papel de pessoas acomodadas no nosso conforto, enquanto pessoas vulneráveis estão à mercê de atos tão covardes por parte das autoridades. “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso, durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais […] Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida”. Sair da passividade diante de uma situação grave e de consequências terríveis para os mais vulneráveis faz com que paguemos um preço, por vezes muito alto.

Nessa perspectiva, a dimensão humana da escritora emerge, de forma concreta, ultrapassando o episódio ocorrido com Mineirinho. Há um diálogo com a realidade da sociedade brasileira, que é profundamente desigual. Ademais, é sabido que os jovens pardos e pretos compõem a maioria da população carcerária.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou dados mostrando que, no país, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. De acordo com o levantamento, entre 2005 e 2022 houve crescimento de 215% da população branca encarcerada. No entanto, em números gerais, a parcela de brancos caiu de 39,8% para 30,4% entre os presos. Enquanto isso, entre os negros cresceu 381,3%, no mesmo período. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou dados mostrando que, no país, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. De acordo com o levantamento, entre 2005 e 2022 houve crescimento de 215% da população branca encarcerada. No entanto, em números gerais, a parcela de brancos caiu de 39,8% para 30,4% entre os presos. Enquanto isso, entre os negros cresceu 381,3%, no mesmo período (CORREIO BRAZILENSE, 7/08/2023).

Em nenhum momento, a narradora menciona se o rapaz é negro, mas pelo contexto e pelos dados acima, tão categóricos, podemos suspeitar que sim. De 1962, quando ocorreu a morte de Mineirinho para cá, houve um aumento significativo da população carcerária no Brasil.  “O país figura como a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. O sistema prisional brasileiro enfrenta problemas, como a superlotação e a falta de estrutura adequada”, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (2022).

O assassinato de Mineirinho impressiona a narradora de modo avassalador: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. E desperta o leitor, que, assim como ela, estava “dormindo”, antes de aquele homem ser morto pela polícia com treze tiros.

O diálogo com a sociedade brasileira que mencionamos acima não parte de um “eu”, mas de um “nós” ou um “como um dos representantes de nós”(LISPECTOR, 2016). Desse modo, a narradora constrói um elo entre o “eu” e todos os seres humanos, ou seja, uma “espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (BAKHTIN, 2006). O discurso traz em seu bojo um teor ideológico que é elaborado, tendo em vista um contexto social específico.

Em “Mineirinho”, os preceitos da justiça são questionados pela narradora, que se sente profundamente tocada sobre o modo como o jovem foi fuzilado pela polícia. “Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia?” Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta”.

No fim da narrativa, a metáfora sobre a casa e o terreno é empregada como um fio de esperança que ainda permanece diante de tanta crueldade. A esperança do recomeço. É possível uma nova justiça (Lembremo-nos de que Clarice Lispector possuía formação em direito).

Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. […] [Quero] sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. […] Eu não quero esta casa [a que já está construída, ou a justiça como estava naquele momento (e ainda hoje!) ]. […] O que eu quero é muito mais áspero e difícil: quero o terreno” (LISPECTOR, 2016).

A metáfora do terreno representa o ápice da expressão da subjetividade da narradora que manifesta o desejo de se juntar à luta para haja uma justiça mais igualitária, que atue em parâmetros mais equânimes. Essa reconstrução (reedificar a casa, a partir do terreno pedregoso, começar do zero) não se alimenta da sensação ilusória de paz trazida pela acomodação de quem “dorme” ou é conivente diante de um cenário de desrespeito aos direitos humanos. Qualquer semelhança com a nossa realidade do século XXI, sessenta e um anos depois, não é mera coincidência.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira. Autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

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