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Quero de destacar a importância da Literatura escrita por mulheres, sobretudo a Literatura negra feminina. É inegável que, de alguns anos para cá, muito tardiamente, emerge um protagonismo autoral das mulheres negras.

Na contramão desse processo, sabemos que sempre ocorreu uma evidente tentativa, por muito tempo bem-sucedida, de apagar a memória do povo negro – após mais de três séculos de escravidão e das terríveis consequências que perduram até hoje deste regime desumano e indefensável. Entretanto, há uma aguerrida resistência da população negra para resgatar essa memória negada, cuja tenacidade permanece cada vez mais viva, atravessando os séculos. Em relação à Literatura, não poderia ser diferente.

Apenas recentemente a Literatura escrita por negros, sobretudo, a Literatura negra feminina, vem recebendo o devido reconhecimento. Nesse sentido, é fundamental discutir sobre a representatividade negra feminina na literatura brasileira. A questão do apagamento do trabalho de escritores e de personagens negros, na Literatura Brasileira, especialmente, mulheres é uma realidade que está passando por transformações muito positivas. Poderia citar aqui escritoras negras: Ana Maria Gonçalves, Djamila Ribeiro, Carolina de Jesus, Sueli Carneiro, Juliana Borges, Elisa Lucinda, dentre outras.

É nesse contexto que quero destacar o nome de Conceição Evaristo (1946), mineira de Belo Horizonte, uma escritora cuja obra vem sobressaindo no Brasil, tanto pela qualidade estética de sua obra como pelo marco de resistência, representando a voz feminina negra silenciada por tanto tempo, sob o jugo da opressão e da violência. Os primeiros contos e poemas da escritora vieram a público na série Cadernos negros (1990), e Ponciá Vicêncio, primeiro romance da autora, teve sua primeira edição em 2003 e já foi traduzido em outras línguas. Evaristo recebeu o Prêmio Jabuti, em 2015, pelo livro de contos Olhos d’água. Aqui destacamos o conto Olhos d’água (2016), que dá título à antologia de contos da autora.

O livro Olhos d’água é composto por quinze contos breves, em que são representadas personagens, mulheres e crianças afrodescendentes, marcadas, de modo indelével, pela exclusão, pela miséria e pela invisibilidade da sociedade. Prosa com traços poéticos, o conto “Olhos d’água” apresenta uma narradora que vê o passado sofrido à distância, sem conseguir se afastar deste, mesmo experimentando, no presente da narração, uma vida diferenciada da anterior. “Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que eu estava morando […]”.

Esse trecho da narrativa nos remete ao termo “escrevivência”, cunhado por Evaristo. A autora assinala que, longe de desenvolver um conceito, desejava mostrar que suas narrativas, assim como a de outras afrodescendentes, expressa a escrita de uma mulher que fala a partir da ótica feminina negra que contribui para formar a resistência no contexto de uma sociedade racista e escravocrata como a brasileira.

Quando falei da escrevivência, em momento algum estava pensando em criar um conceito. Eu venho trabalhando com esse termo desde 1995 […] várias vezes fiz um jogo com o vocabulário e as ideias de escrever, viver, se ver. […]Este termo nasce fundamentado no imaginário histórico que eu quero borrar, rasurar. Esse imaginário traz a figura da “mãe preta” contando histórias para adormecer a prole da Casa Grande. […]A minha escrevivência e a escrevivência de autoria de mulheres negras se dá contaminada pela nossa condição de mulher negra na sociedade brasileira. Toda minha escrita é contaminada por essa condição (EVARISTO, 2017).

Como alguém que vivenciou muitas agruras ao longo de sua vida, como a maioria das mulheres negras do nosso país, Evaristo constrói a narrativa do conto “Olhos d’água”, uma mulher negra, mergulhada no passado sofrido e consciente de seu papel nessa sociedade que permanece extremamente racista e desigual, mesmo após séculos de tantas lutas – a “escrevivência”. Inicia-se com um questionamento que vai perpassar toda a narrativa: qual é a cor dos olhos de sua mãe? O leitor não conhecerá o nome da narradora nem o de nenhum membro da família, pois não são mencionados. A narradora apenas se apresenta como a mais velha de sete filhas, num lar em que a ausência do pai mostra-se evidente – sua figura nunca é mencionada -, o que, dentre outras razões, faz a personagem afirmar que sempre teve que resolver seus problemas como uma pessoa independente. “Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência”. (EVARISTO, 2016). Com a vida atribulada que a narradora sempre experimentou, a infância e a adolescência passaram rapidamente, e, provavelmente, a necessidade de trabalhar abreviou essas fases tão ricas e essenciais na vida de todas as pessoas.

Importante destacar que nessa história de vida de tantas privações, a sua mãe é uma figura essencial em sua trajetória“[…] eu me lembrava nitidamente de todos os detalhes do corpo dela”. A mãe é retratada com uma mulher forte, que mesmo diante das maiores tribulações, fazia o possível para amenizar o sofrimento das filhas. Apesar de trabalhar muito, na impossibilidade de comprar brinquedos para as filhas, tornava-se ela mesma, uma boneca viva para que as meninas pudessem brincar, “a boneca-mãe” (EVARISTO, 2016). Sendo a presença da mãe, tão imprescindível na vida da narradora, os detalhes físicos e suas histórias e vivências não lhe fogem à mente, porém não lhe ocorre o que, para ela, naquele momento, soa como algo primordial: não se lembra da cor dos olhos dela.

A narradora, que já está há muito tempo distante da cidade onde nasceu, move-se no tempo, retorna ao passado, rememorando as histórias de infância que ouvia sobre a origem de sua genitora, que nascera no interior de Minas Gerais.  Percorre a história de vida da mãe que se assemelha à sua, em tempos idos: a dor da miséria e da fome. “As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago”. Era nesses momentos difíceis que a mãe, de forma carinhosa e para aliviar o sofrimento das meninas, criava uma brincadeira: receberia como adorno nos cabelos, braços e colo as flores colhidas pelas filhas, as princesas, que a reverenciavam como uma rainha. “Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esses e outros jogos para distrair a nossa fome” (EVARISTO, 2016).

Com essas marcas do sofrimento e da miséria tão vivas no pensamento, no afã de descobrir o que tanto desejava, a narradora volta à cidade em que nasceu. Nesse retorno ao passado, adentra por memórias familiares, além de fazer um mergulho em sua ancestralidade, o que a direciona para um legado que transita pelas gerações ao longo do tempo. Reflete sobre como e por que deixou sua família e foi para outra cidade, destino comum a muitas jovens pobres do país, não sem ter ainda em mente o questionamento que a afligia acerca da cor dos olhos da mãe. “E aquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família; ela e minhas irmãs tinham ficado para trás” (EVARISTO, 2016).

Num contexto de uma sociedade (ainda e em muitos sentidos) escravocrata como a nossa, em que o apagamento da cultura afrodescendente é uma realidade, a escrita de Conceição Evaristo “filia-se, portanto, a esse veio afrodescendente que mescla história não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária” (DUARTE, 2006), pois faz-se necessário compreender que a escravidão “é o nosso berço”. […] “No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão […]” (SOUZA, 2017).

Ao término da narrativa, as lágrimas da mãe que sempre foram de dor, de tristeza, devido à miséria em que viveram durante grande parte da vida, no reencontro com a filha, transmutaram-se em pranto de felicidade. A tonalidade dos olhos maternos, “olhos d’água”, são a cor das Águas de Mamãe Oxum, que é um orixá que se relaciona com “o poder, beleza, sabedoria e perspicácia feminina, à gestação e à maternidade, ao cuidado materno às crianças pequenas, […]No Candomblé, liga-se ao elemento natural das águas doces” (SANTOS, 2016). Águas doces que evocam a doçura da mãe, ao longo da vida, com sua sapiência, mesmo diante das mais duras adversidades, como a fome. “Só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso prantos e prantos a enfeitar seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era a cor dos olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície” (EVARISTO, 2016).

A narradora, agora com a filha, reitera a procura da cor de seus olhos, num processo em que há uma identificação com sua mãe.  “[…]alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os olhos da outra”. Esse jogo de espelhamento leva a narradora a ver nos olhos da filha os olhos da mãe, expressa o sentimento de pertencimento inerente à sua condição de mulher negra, com toda a sua cultura e sabedoria. “Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: – Mãe, qual é a cor tão úmida dos seus olhos?” (EVARISTO, 2016).

No decorrer dos séculos, o Brasil sustenta sobre seus ombros, o triste e doloroso legado colonialista e escravocrata, mesmo após a Abolição da Escravatura, que não proporcionou as mínimas condições de vida e de cidadania para a população negra recém-liberta. Dessa forma, a história da sociedade brasileira tem, na escravidão, “a sua influência principal até os dias atuais [por isso] o ódio à classe dos excluídos e marginalizados, quase todos negros e mestiços o que explica a vida arcaica e odiosa no Brasil” (SOUZA, 2020).

A prosa poética de Conceição Evaristo, no conto “Olhos d’água”, com ênfase na ancestralidade, revela-nos como se impõe, de modo irrefutável, a Literatura negra feminina, com a resistência das mulheres negras, não obstante o racismo, a desigualdade, o genocídio das pessoas negras, a falta de oportunidades e a tentativa de apagamento de sua cultura na sociedade brasileira.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF) e autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

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