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Prólogo de ROUGE, por Boaventura de Sousa Santos:

Este livro é surpreendente. Entramos nele pé ante pé. Páginas depois, caminhamos, em breve, estugamos o passo e, um pouco mais à frente, corremos e continuamos a correr até ao fim. Chegamos ofegantes. Paramos. Um silêncio profundo nos avassala. Li ou sonhei?  Entendi o que li ou entendi-me no que li? Terminei o livro ou o livro terminou comigo? Em que momento me perdi ou me achei ou me achei ao perder-me? Mais silêncio. Como se o turbilhão do silêncio começasse depois de terminar o turbilhão das palavras. O silêncio detém-se nalgumas palavras e aí adensa-se e afunda-se. E, no fundo, brilham, estriadas pelo ondear de estranhas águas subterrâneas de cor vermelha, palavras como liberdade, beleza, poesia, literatura, cultura, livros, leitura, revolução, mais liberdade, utopia, Lisboa para esconder dos turistas. 

É um livro culto. Há nele muita teoria poética, muita filosofia, autores preferidos, livros exemplares, a tradição da crítica mordaz dos costumes de Eça de Queiroz, entre muitos outros. É voraz no que abrange e nem a pandemia ou o turismo lhe escapam. Absorve tudo, mesmo sabendo que não pode abarcar tudo, pois reconhece, com Borges, que a memória é feita de esquecimento. É um hino à cultura e um constante apostrofar contra os cânones que a procuram conter. É um hino à liberdade que rompe com as liberdades autorizadas. É um hino ao livro e à leitura, ao livro que cheire a livro e à leitura que saiba dar prazer porque o dá a si mesma. 

É um livro desestabilizador. Tanto na forma como no conteúdo, se é que faz muito sentido distinguir entre uma e outro. São crónicas? Comentários? Ensaios? Panfletos? Manifestos?  Páginas de diário? Um longo poema? Ficção? Sim, tudo isso, e nada disso, se qualquer desses géneros excluir os outros. Uma teia de textos tão bem entrelaçados que mais parece um mosaico labiríntico. Mas um labirinto muito especial onde só há partida e onde a chegada seria uma frustração. Com Luís Filipe Sarmento há partir, partir sempre. Aos mais exigentes apenas direi que é pura e simplesmente uma explosão de criatividade. Que arde em dois fogos. O fogo da denúncia e o fogo da esperança. Os dois fogos são indissociáveis, mas ai de quem os confunda.  

É um livro destemido. O fogo da denúncia é devastador.  A caminho da fogueira da denúncia vão todos os hipócritas, impostores, laureados por influência ou corrupção, medíocres, traidores, bajuladores, desleais, malfeitores da língua, da alegria, e da convivência, reacionários mais ou menos disfarçados, comentadores encartados, maldizentes profissionais, consagrados por outros consagrados que ninguém consagrou e de que ninguém se lembra, ditaduras camufladas de democracias. A dimensão da denúncia corresponde à dimensão do que denuncia: “Os seus protagonistas ocultam-se numa falsa neutralidade imprudente, deixando as cartas de navegação nas mãos privadas de interesses obscuros, que só tem lançado, nas últimas décadas, o mundo no caos…A história do reacionarismo ao que é novo passa sempre pelo ódio e pelo desprezo aos artistas que eternizam a civilização… Só a difusão da linguagem civilizacional pode contrariar o galope desenfreado dos déspotas…” É uma crítica avassaladora que queima até às últimas raízes do statu quo da estagnação conformista. Não fica cinza sobre cinza.  

É um livro vermelho. A explosão também é a do fogo da esperança: “O sentido das vísceras e da mãe secreta, guardiã do horizonte onde os primeiros eventos se atraem à colisão para que o berço divino se autentifique na centelha da obra, o que se expande na obscuridade desconhecida de um embrião, na revolução contínua do sonho de um crepúsculo matinal”.     

Não o vermelho do poente, mas antes o vermelho da aurora. Luís Filipe Sarmento sempre viveu no vermelho. Não no vermelho das contas por pagar, mas no vermelho da vida por viver, da sociedade por existir. Não é por acaso que a sua magna antologia da obra publicada até agora se intitula Ao RubroObra poética reunida, 1975-2020 (Poética Edições, 2020). Tal como Stendhal, de Le Rouge et le noir (1830),  Luís Filipe não explica nem tem de explicar o porquê do vermelho. E não há nele o noir, porque em Luís Filipe Sarmento, só há rubra ascensão, não a negra queda de Julien Sorel.  Fica-se, pois, pelo vermelho, a cor da sua paixão pela resistência e pela liberdade, razões maiores da sua existência e da sua poesia. O vermelho duplo da língua que ele domina como ninguém.  

Rouge ruge desde o fundo das entranhas para nos impelir a galopar sem precisar de ventiladores da respiração, sejam eles vírgulas ou pontos finais.  Até atingirmos o brilho genuíno das ruínas-sementes de povos, de poemas, de culturas e de ideais de uma sociedade melhor, recorrentemente pisadas pelos tractores pesados das luzes oficiais. É esse brilho apenas bruxuleante que nos devolve a esperança da literatura que está por vir: “É uma literatura dispersa, enterrada em estaleiros divinamente esquecidos por escravos em fuga dos impérios palavrosos e niilistas, que alguém um dia escreverá em total liberdade e não sob o jugo feroz do tirano cujos carrascos, sob a cara tapada do pseudónimo cobarde, nunca escreveram literatura, mas paradoxalmente vivem dela, destruindo-a, como se desconhecessem a autofagia infeciosa”.  

A revolução que procura está dentro e está fora e é permanente.  “Unicamente com a revolução permanente da juventude decente contra os sucessores dessa estirpe indecente que tomou conta dos recursos do planeta e cuja comissão central se reúne periodicamente sob os auspícios de um clube cujo nome vai eternizando certa unidade hoteleira, estabelecendo novas estratégias de destruição da humanidade excendentária, garantindo, como sempre, a perpetuação extravagante do consumo desvairado dos despojos. A revolução permanente deverá, assim, voltar a estar na ordem do dia. E estará.” 

É um livro corporal. Leva a língua portuguesa até aos limites da sua ductilidade, mas não faz disso um exercício hermético e muito menos etéreo. Os voos da sua imaginação super-alada caem de bom grado numa tertúlia de boa conversa ou numa mesa de boa comida. Os deuses do Olimpo de Luís Filipe Sarmento saem sem transição das suas mais profundas elucubrações para os prazeres simples da vida. “A essência de cada história está no consumo de essências dos seus autores. Da Antiguidade aos nossos dias, a ideia de deuses induziu, para chegar à sua essência, o consumo imoderado de essências. Como respiração da morte periódica da história…(nem de propósito, chamam-me para um bacalhau à Zé do Pipo em cama confitada de cannabis ilegal)… (comemo-nos, multiplicamo-nos, diferenciamo-nos nas latitudes da cozinha que nos atrai ao pecado da existência) … (contra a corrente chega-me o odor provocador e instigante de um rabo de boi estufado)… (na esplanada dos meus amigos indianos, as chamuças repletas de caril sorriem fumegantes)”. Nada disto é contraditório porque a contradição é a própria vida e o poeta sabe disso melhor que ninguém.    

É um livro apaixonante. A pura fruição da maestria no uso da língua. Nele não cabem as definições convencionais onde cabem os definidos sem sobras. Vejamos a definição de literatura: “A literatura inscreve-se na louca inspiração da leitura preexistente, na sua acção quotidiana na orografia do inesperado, na espeleologia secreta do parágrafo alarmante, no mergulho funerário na bruma paginada que cai e pesa sobre as aparências num jogo de figurações clandestinas, na alienação circunstancial de uma obscura travessa, na fulgência do imprevisto, no subsolo imagético, para uma ascensão metaforicamente divina como hipertexto fulgurante, distinto e original da fonte.” Não disse tudo, mas disse algo essencial: que não há tudo quando se trata da literatura.  O essencial está na singularidade artística, a única legítima: “Os alicerces de uma singularidade artística passam pela observação minuciosa de detalhes no contexto de um tempo de grandeza de banalidades. A ampliação do pormenor revela o que nele se oculta, propondo a condição de possibilidade para o anúncio inesperado da excentricidade. Nem tudo o que existe está inventado. Quase todos os actos de criação são estimulados pela surpresa em si. O espírito sorri no seu novo lugar experimental, expondo-se, arriscando, libertando-se. Da obscuridade impessoal da partícula poderá surgir o instante litúrgico da glória. A nossa divindade pessoal e intransmissível apõe-lhe a sua marca de água, distinguindo a insignificância encoberta ao olhar despido numa particularidade visível e surpreendente. No pó dos dias há um admirável universo de possibilidades plásticas e poéticas.”  

Podemos aprender muito sobre o mundo com os livros. Os livros raros são aqueles com que aprendemos a ser. Este é um deles. 

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