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Um poeta com olhar crítico exacerbado sem concessão ao “patotismo”, o repugnante compadrio nas letras (do que resta) brasileiras. Nada acomodatício, força semântica como máquina de significados novos, contundente sem nada rebarbativo, denunciador em nada panfletário, Régis Bonvicino poeta ciclópico em tempos obtusos. Sua poética é melhor libelo contra a degenerescência não só da linguagem mas do pensamento. Evocando Calvino, o Italo centenário em 2023, diante da “perda de forma”, sua força de tensão polissêmica para a exatidão “valeryana” agora rebobinada para dar conta do estilhaço distópico  transmoderno. Bonvicino é antídoto ao saturamento sígnico, “a pestilência politicamente correta álibi do oco argumental”. Toda obra planificada em arquitetura de “signagem” para não serem degustados ao gosto do consumo. Afinal, a poesia é o soberano “inutensílio” não palatável ao mercado. Editado em 2019, Deus devolve o revólver é “opus magna” sobre nosso entorno urbano nauseabundo de adeus as armas pelas utopias. Percurso prenhe das coisas às palavras. O poeta recolhe signos não codificados pelo cânone, o poeta rastreia becos, quebradas, manos/ minas/ a azáfama dos noias, enunciados muito além do “pavloviano” automatismo verbal do bom mocismo geradores de redundâncias.  Régis propulsiona um martelo de superreferencialidades, a dinamite nietszchianiana sem rede de proteção além dos perceptos hipertrofiados dos interpretantes que comungam do tesão escafândrico pelo pathos insurgente.  Quando o leio sinto-me detentor dum breviário ético para conviver num tempo ‘a deriva.  Um ethos para náufragos.  O poema “Álibi” já se inscreve em qualquer antologia internacional contraponto poético do universo de Don DeLillo em Cosmópolis sem ser hiperbólico!

Oh, Pai, tende piedade
dos zilionários, dos vendedores legais de armas
dos lobistas, do dinheiro farto dos narcos
dos unhas de fome, dos gigolôs dos cassinos
dos traficantes iguanas, rim e fígado

Oh, Pai, tende piedade
dos banqueiros, dos juros sobre juros,
do “laissez-faire” chinês, do “marketing” do bem
dos plutocratas, dos fundos-abutres
garras, o condor-dos-andes não canta

Oh, Pai, tende piedade
dos meões do dinheiro sujo dos contratos públicos
daqueles que depreciam os papéis de P.P. Pasolini
daqueles que lavam dinheiro com H. Matisse
misericórdia divina, delícia e êxtase dos santos  

Oh, Pai, tende piedade
dos xeques, dos grandes proprietários de terra
daqueles que não entregam a lebre
dos traficantes de marfim, caveiras com dentes e pedras
da criptomoeda, dos chefetes políticos despóticos  

Oh, Pai, tende piedade
dos traficantes de lixo eletrônico, dos agiotas
dos matadores de aluguel, dos guarda-costas
dos sócios ocultos, dos donos de “offshores”
Oh, Pai, sobretudo tende piedade de nosso honrado “boss”.

Na era de tanta “nuvem” lírica, de tanta literatura “fofa”, a poética de Bonvicino “presentifica” muito além dos cacoetes verbais ou talismãs metafóricos. A grande poética se expressa como a face de Jano, dúplice efeito de maximizar significados e expor a nu outros em seus mecanismos.  A “metaironia” perpassa com maestria todo encadeamento de fissões de significações e o dissídio de consensos.  Numa fanopéia dantesca nos dá o quadro a que foram relegados os órfãos da globalização e neoliberalismo no poema “Luz”:

Sucateiro rastafári
sentado na mureta, cabeça baixa
sob as palmeiras do largo
pés na mochila, garrafas “pet”

“player” do ecossistema global
um rato entra no bueiro.
O relógio da Luz
sob um sol de rachar 

daqui é apenas uma torre
o vapor sobe do asfalto.
Cicatriz na cara da puta
pista dupla, atravessa a avenida 

“short” verde, blusa regata
cabelo curto, o michê esfria
os muros exalam um cheiro de urina
A noite abate o dia 

um cachorro fareja, tranqüilo,
a calçada limpa,
outro, órfão de uma noia,
uiva na esquina.

Nenhuma redução beletrista à eficiência exigida em debêntures da Faria Lima, sua poética é da ordem da potência, fenomenologia escancarada. Régis revoga a linha divisória aristotélica entre duas “histórias” – a dos historiadores e a dos poetas – como bem defende Jacques Rancière em A partilha do sensível. O poeta descabaça o prosaísmo estreito, desfossiliza o pacto dos objetos com os simulacros babacas no envoltório da mediocridade.  Bonvicino desmente a ideia de que os mestres nos decepcionam no trato pessoal. Um exegeta despojado, um anacoreta da megalópole desenxabida não fosse seu caos inspirador.

Flávio Viegas Amoreira é prosador e poeta. Pela Kotter, lançou as narrativas breves de Apesar de você, eu conto e os versos de Whitman e Pessoa, meus camaradas.

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