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Leite derramado (2009), romance do premiado cantor, dramaturgo e escritor Chico Buarque – Prêmio Jabuti (2004 e 2010) e Prêmio Camões (2019) – relata a história de Eulálio Montenegro Assumpção, um homem centenário de origem aristocrata, que está hospitalizado, na iminência da morte, e que se apresenta como o narrador de suas memórias e de seus antepassados. A narrativa traz relevantes fatos históricos do mundo e do país, dentre os quais: a vinda da Família Real para o Brasil, no século XIX, com quem veio o seu trisavô; o fim do período imperial; a luta pela Abolição da Escravatura; adentrando o século XX, com a Revolução de 30 e o Golpe Militar de 1964. Eulálio desata a falar não se importando com seus interlocutores, que podem ser tanto as enfermeiras, a filha ou até mesmo o próprio leitor. Nesse discurso caracterizado por uma fala desenfreada, arrogante, preconceituosa ao extremo, destacamos figura da jovem Matilde Vidal, com quem Eulálio foi casado.

No discurso de Eulálio, o que está nas entrelinhas para o leitor atencioso e que emerge no texto são juízos de valor, preconceitos e incoerências, permeados por antagonismos tanto na esfera individual quanto social. O narrador se mostra extremamente racista, entretanto se casa com uma mulher negra, por quem foi muito apaixonado.

Com relação à questão histórica, o narrador relembra os feitos de seus antepassados: seu tetravô também Eulálio, como todos seus ascendentes e descendentes do sexo masculino, numa corrente quase infinita de homônimos, que apresenta uma genealogia que simboliza o poder político exercido pelos Assumpção – lutou na campanha dos castelhanos “contra a França de Robespierre” (p. 103); o trisavô “desembarcou com a corte portuguesa” (p. 50) e era confidente da rainha D. Maria I, a Louca; o bisavô era o Barão dos Arcos; o avô foi comensal do Imperador D. Pedro II e correspondia-se com a Rainha Vitória, da Inglaterra. Esse avô, segundo o narrador era “um grande benfeitor da raça negra” (p.50). E aqui ressaltamos um dos pontos altos da ironia presente na narrativa. “Creiam que ele [o avô] visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês” (p. 51). O avô de Eulálio, segundo ele, queria levar os escravizados do Brasil de volta para a África, e fundar uma “Nova Libéria”, entretanto, anteriormente a esse “ato de bondade”, foi realizada uma parceria com os colonizadores ingleses, o que nos sugere tratar-se do tráfico de escravizados. Esse Eulálio do século XIX teve de refugiar-se em Londres, quando a República foi proclamada no Brasil. Também o anteriormente citado Barão dos Arcos, “pagava altos tributos à Coroa pelo comércio de mão-de-obra de Moçambique”, outra alusão ao tráfico negreiro.

Já no século XX, é feita uma menção ao crack da Bolsa de Nova York, em 1929: “Em Londres, me falaram das calamidades financeiras, milhões de libras esterlinas fulminadas da noite para o dia, devido ao crack da bolsa de Nova Yorque” (p. 59). Mais adiante, refere-se à Ditadura Militar, quando Eulálio menciona o neto “comunista”, não sem enfatizar a ligação de sua família com o governo autoritário que ele chama de “Revolução”: “Mas em vez do comunismo, veio a Revolução Militar de 1964, então tratei de lhe lembrar nossas antigas relações de família com as Forças Armadas […]” (p. 126).

Ainda no que se refere à História, temos a figura do pai, Eulálio Ribas Assumpção, senador da República Velha, um homem lascivo, viciado em cocaína, corrupto, frequentador dos melhores bordéis de parisienses, esbanjador da fortuna da família, que morre assassinado pelo marido de uma de suas amantes. A partir desse assassinato, instaura-se a decadência do poder político e econômico na família Assumpção. Na missa de sétimo dia de Eulálio Ribas, o pai, o narrador conhece Matilde, por quem sente uma imediata e incontrolável atração física. A jovem era uma mulher negra. Esse relacionamento, no decorrer do romance, vai representar uma questão muito mal resolvida pelo narrador. A relação de Eulálio com Matilde nunca foi aceita pela mãe de Eulálio, uma mulher soberba e arrogante que só falava em francês com os empregados. Essa é uma das nuances do preconceito racial que permeia todo o romance.

Eulálio nunca perde, ao narrar suas memórias, a sua voz senhorial, herdada de seus antepassados. Justifica sua atração por Matilde de forma insólita, ao falar sobre a relação com Balbino, um menino negro, filho de um empregado de seu pai.

E eu já desconfiava que ele [Balbino] também se movia com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos, para recolher mangas que eu largava no chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda. […] e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias, ponderações tão acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas. Mas por esse tempo felizmente aconteceu de eu conhecer Matilde, e eliminei aquela bobagem da cabeça (p. 20).

Além de desejar tirar proveito de sua condição de senhor, herdada pelos ancestrais escravocratas, Eulálio via com extrema naturalidade os maus tratos impingidos aos escravizados. No episódio em que relata a história do chicote que pertencera a seu pai e anteriormente ao seu pentavô, afirma que Balbino, que, oficialmente, não era mais um escravizado, desejava apanhar: “O Balbino nem era mais escravo, mas dizem que todo dia tirava a roupa e se abraçava num tronco de figueira, por necessidade de apanhar no lombo” (p. 105).

Não obstante a postura claramente racista, Eulálio casa-se com Matilde, que é uma filha bastarda de um político influente integrante do governo de Getúlio Vargas, uma jovem de pele “quase castanha”, “a mais moreninha das congregadas marianas”(p. 20). Outra passagem que expõe a personalidade preconceituosa de Eulálio é mostrada quando este entra no elevador do prédio onde vive com Matilde: “Trata-se enfim de um ambiente seleto, e era natural que me causasse espécie entrar comigo no elevador um grandalhão com cara de nortista, nariz chato, pele grossa. Indiquei-lhe o elevador de serviço […]” (p. 142). Imbuído de valores preconceituosos, racistas e moralistas, o narrador, aos poucos, vai descrevendo a figura da esposa, mas não o faz de forma linear.

A sensual e desejável Matilde apresenta um comportamento que não se molda aos padrões aristocráticos da família Assumpção. Circulava na fila de pêsames nas exéquias do pai de Eulálio, como se estivesse numa fila de sorveteria, não tem ginásio completo, não fala francês corretamente, é mãe aos 16 anos, assobia para chamar os garçons no restaurante, é aluna problema do Colégio Sacré-Coeur e congregada mariana. Ademais, dança maxixe. Usa vestidos cor de laranja, o que proporciona um belo contraste com a cor de sua pele e não as roupas discretas que a sogra deseja que ela use. Quando senta ao piano, não toca uma peça de Mozart, Beethoven ou Tchaikovsky, mas sim “um batuque chamado Macumba Gegê” (p. 45).

A postura da jovem contrapõe-se à arrogância e ao preconceito racial, social e cultural de Eulálio e de sua família. O casamento dura muito pouco e, na altura do capítulo 17, devido ao ciúme excessivo do narrador, o que faz com que Schwarz (2009), aponte que “os amigos de Machado de Assis notarão o paralelo com Dom Casmurro” (SCHWARZ, 2009, p. 2), Matilde “desaparece” da vida de Eulálio.

De acordo com a narrativa empreendida pela memória falha e contraditória de Eulálio, há pelo menos cinco versões para o desaparecimento da mulher: fuga com outro homem, morte no parto da filha, morte por tuberculose, suicídio no mar, acidente na estrada Rio-Petrópolis. As versões variam de acordo com quem dá a explicação, o narrador e marido, a sogra, a filha, as colegas de colégio. Mas Eulálio é a única voz que se faz ouvir na narrativa, representando, assim, todas as mencionadas anteriormente. Figueiredo (2010) aponta-nos uma nova versão: Eulálio teria assassinado Matilde. Essa hipótese é tão plausível quanto a da descrição de um ato sexual, pois, segundo a pesquisadora, havia sinais claros de violência na relação do casal, uma vez que ele a jogava na parede com brutalidade, e a “espremia” contra os ladrilhos, e ela dizia: “Eu vou” (p. 67)

Se lermos a frase “Eu vou” como o momento da morte, tudo faz sentido, inclusive a referência ao que se dizia ‘ de um jeito grossseiro na boca do povo. Assunção, o assassino? Assunção, o corno’? Esta frase, aplicada ao pai, no momento em que é proferida, é incoerente já que ele teria sido assassinado por um marido corno, não ele era o corno, não era ele o assassino (FIGUEIREDO, 2010, p. 229)

Aqui, a frase “Eu vou” pode suscitar vários sentidos, dentre os quais, além da hipótese levantada por Figueiredo, a possibilidade de Matilde denunciar o seu agressor (“Eu vou [te denunciar]”) ou até mesmo “Eu vou [te matar]”, num impulso de autodefesa.

Para “decepção” do narrador racista e preconceituoso, a filha se casa com o filho de um imigrante; o neto torna-se comunista em plena ditadura militar; o bisneto, nascido no cárcere, onde o pai foi torturado, é negro e mais tarde será pai de um “garotão” que é um traficante, como os antepassados de Eulálio, mas dessa vez, um traficante de drogas e não de escravizados. É esse dinheiro ilícito que vai pagar todas as despesas hospitalares do narrador.
Em sua memória confusa, as lembranças vêm de forma fragmentada e, por diversas vezes, o leitor não sabe se Eulálio está contando ou inventando suas histórias.

Em Leite derramado, com a narrativa memorialística do centenário Eulálio Montenegro d’Assumpção, temos a representação da supremacia das elites escravistas, sob o ponto de vista de quem detinha e ainda detém o poder econômico e político, que passa de geração a geração, o racismo latente que atravessa as relações sociais no Brasil, que dá forma e corresponde aos períodos fundamentais da história do país: Colônia, Império, República Velha, Ditadura Vargas; o período democrático interrompido pelo Golpe de 1964, que instaurou a Ditadura militar e a fase de redemocratização, até o ano de 2007, no caso do romance.

O casal Eulálio e Matilde simboliza, com todas as suas diferenças, um meio de tentar entender a História de um país, cujo legado colonial e escravocrata, ainda dita as relações sociais. “Tanto o amor quanto o ciúme se alimentam da desigualdade de classe e de cor, que segundo a ocasião, funcionam como atrativo ou objeção” (SCHWARZ, 2009, p. 3), aspecto que se constitui como um dos principais fios condutores da narrativa.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF/ CNPq). Publicou vários artigos acadêmicos e capítulos de livros. É autora do livro Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

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