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Artigo adaptado da dissertação de mestrado O pesadelo pós-colonial – Identidade e memória na narrativa de António Lobo Antunes (2018. 119 p.)

Daniel Osiecki | Curitiba – PR

Desde o século XVIII, com a publicação de A vida e as opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy (1759), de Laurence Sterne, no século XIX Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), e depois já no século XX com Ulysses, de Joyce (1922), vários escritores deixaram de se preocupar com enredos mais convencionais, com simplesmente contar histórias rompendo com formas tradicionais de narrativas, e passaram a se interessar e a explorar as diversas formas de narrar, com formas que exigem mais do leitor. Em alguns casos, como o do próprio Joyce em Ulysses, ou de Viginia Woolf com Mrs. Dallaway, é irrelevante nos atermos ao enredo. São obras que exigem atenção do leitor para questões mais pertinentes durante a leitura, como a construção literária como um todo, a estilística, a forma, as entrelinhas e uma série de fatores que às vezes são, para o leitor menos atento à literatura mais séria, sem sentido.

O boom da literatura portuguesa no século XX se deu com o surgimento dos jovens escritores do Neorrealismo. Período de predominância majoritariamente de narradores, os neorrealistas pregavam o uso da literatura como meio de resistência ao Estado Novo e à ditadura salazarista. Como o Neorrealismo foi um movimento de cunho panfletário (TORRES, 1977, p.47) escritores como Fernando Namora, Alves Redol, Manuel da Fonseca e outros, se opunham ao presencismo e por isso não havia espaço para o lírico, e a poesia ficou de lado durante esse período. Não só a poesia ficou de fora, mas quaisquer formas de experimentalismos e, nas palavras de Fernando Namora, ― malabarismos formais. A ideia era ser o mais direto possível, já que havia a necessidade de passar mensagens ao leitor comum, e não ficar preso a formas e academicismos. A epígrafe de Gaibéus, antológico romance de Alves Redol de 1939, exemplifica bem essa temática.

Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem (REDOL, 1939).

Alexandre Pinheiro Torres, um dos maiores estudiosos do Neorrealismo português, em seu livro O movimento neorrealista em Portugal em sua primeira fase (1977), defende a tese de que conteúdo e forma na gênese do Neorrealismo em Portugal eram polos equidistantes e jamais se agregariam como um todo. Porém para Mário Sacramento esse argumento não se sustenta e quando Fernando Namora e Vergílio Ferreira inauguram um novo viés neorrealista (a chamada segunda fase do neorrealismo), rompem com o engajamento totalmente panfletário da primeira fase. Ou seja, conteúdo e forma nessa altura já podem ser identificados como polos integradores entre si.

Manuel da Fonseca foi praticante de vários gêneros literários, como poesia, conto, crônica e romance. Contador de histórias nato, dominou como poucos as técnicas narrativas do conto. Entre suas obras mais relevantes estão Aldeia Nova (1942) e O fogo e as cinzas (1952), ambas coletâneas de contos.

As narrativas longas Manuel da Fonseca tiveram menos êxito, mas com seu senso crítico apurado e seu vocabulário privilegiado publicou dois belos romances: Cerromaior (1943) e Seara de vento (1958). Cerromaior apresenta, como era praxe entre os neorrealistas, uma gama imensa de personagens sem procurar enfatizar dramas isolados. A abordagem do coletivo é sempre superior à do individual.

Mesmo estando inserido historicamente em um movimento neorrealista iniciante, ou seja, ainda com fortes tendências socialistas, Cerromaior chama a atenção por sua estrutura narrativa não-linear, o que não era comum nesse período. Romances como A Selva, de Ferreira de Castro, Gaibéus, de Alves Redol e Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes apresentam estruturas narrativas similares entre si, bastante diretas, estanques e lineares que, para atingir seu objetivo principal (crítica social), como era caro à primeira fase do Neorrealismo, se preocuparam muito mais com o conteúdo do que com a forma.

António Lobo Antunes é um escritor da fase pós 25 de abril, ou seja, passou a publicar depois da Revolução do Cravos juntamente com escritores como José Saramago, Lídia Jorge, Nuno Júdice, Miguel Souza Tavares entre


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outros. A obra antuniana não tem quaisquer elementos que dialoguem com os neorrealistas exatamente pelo fato de o movimento dos anos 30 demonstrar muito mais apego aos temas e enredos convencionais do que à forma, por isso a analogia.

Mesmo Lobo Antunes tendo publicado pela primeira vez no final dos anos 1970, seis anos depois de seu retorno da guerra em Angola, ou seja, sua vida literária se inicia em um período democrático em Portugal, sua literatura está repleta de referências a Salazar, ao Estado Novo, à ditadura fascista e à guerra colonial, naturalmente.

Seus dois romances iniciais, Memória de elefante de Os cus de Judas, são livros muito similares em seu eixo temático (como também acontece em outros romances mais recentes de Lobo Antunes, como Meu nome é legião, Arquipélago da insônia, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? e outros) mas se diferenciam na forma de narrar. As narrativas antunianas são acidentadas sintaticamente, herméticas e proporcionam, propositalmente, uma grande dificuldade de ser linear, por não se ater aos fatos de forma estanque e lógica, por isso há em seus romances a presença bastante forte do delírio, do pesadelo e da memória não afetiva.

Muito dessa característica hermética se deve ao fato, no caso de Os cus de Judas, por exemplo, ser narrado em primeira pessoa, diferente de Memória de elefante, o que assume um tom de relato confessional, pois o narrador de Os cus de Judas conta à sua interlocutora, anônima, suas agruras e peripécias pessoais principalmente suas lembranças da guerra em Angola. Há de se levar em consideração a forma como seu relato se constrói, pois é através de sua interlocutora, estática, que as oscilações de seu relato vão se desdobrando aos poucos. Em momento algum de seu relato acidentado, o sentimento de absurdo diante dos percalços que enfrentou e que ainda parece enfrentar não se desvanece com o tempo, ou seja, a memória só o aumenta.

Por isso aqui há de se pensar no que Seligmann-Silva chama de nitidez da memória, ou seja, aquilo que é rememorado é factível? É confiável? Lembremos que todo seu relato é composto por flashes ocorridos em situações de alarme, ou na guerra ou em crises em seu casamento, a separação das filhas.

O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua simultânea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o ―real‖) com o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracionária desconstrói o maquinário da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o ―real‖ equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte da intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 46, p.47).

E mais adiante:

O conceito de testemunho desloca o ―real‖ para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas é marcado também pelo elemento singular do ―real‖ (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 47).

Essa questão do elemento singular do real é um ponto chave que endossa a literatura antuniana. A construção de seu texto só é possível de ser plena como é, porque o elemento estético prevalece, senão Lobo Antunes produziria diários, livros-reportagem e não romances. Isso serve para os três romances que compõem sua trilogia inicial, mas principalmente em Os cus de Judas, que é seu livro mais bem arquitetado e mais pessoal pelo fato da escolha do foco narrativo. Não sendo um narrador onisciente como o narrador de Memória de elefante, o médico psiquiatra de Os cus de Judas se restringe à memória, ou seja, o lembrar nesse romance funciona como um pesadelo permanente que é impossível de transpor pelo fato de não haver uma busca por um futuro, ou seja, o pesadelo, o elemento que o tortura, é o eterno retorno como em um movimento cíclico, ao presente sem fim.

Há de se pensar na construção romanesca antuniana como uma espécie de substituição, ou seja, a linguagem como substituta de uma ausência. E essa ausência pode ser resultado de traumas dos mais variados e traumas não faltam nas vidas dos protagonistas antunianos.

Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ― indizível‖ que a sustenta. A linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 48).

Por isso o modo de narrar dos protagonistas antunianos (ou do narrador onisciente de Memória de elefante) é tão característico, tão (propositalmente) sintaticamente acidentado, pois é uma reprodução de um imenso e eterno delírio. É interessante ressaltar que nos romances de Lobo Antunes, até em Memória de elefante, mesmo que indiretamente, o ato de escrever é assumido. Em Memória de elefante o narrador onisciente em terceira pessoa se refere, em vários momentos, ao médico com aspirações a literato. Já em Os cus de Judas o ato de estar de fato escrevendo um relato é diretamente assumido, e pode-se notar que pelo fato de a memória ser essencial o testemunho também o é.

No caso dos traumatizados protagonistas antunianos a inverossimilhança de situações limite como os horrores da guerra é tão inconcebível, tão forte, que a própria testemunha ocular passa a duvidar daquilo que narra (lembra). É claro que no caso da literatura e, ainda mais, da literatura antuniana, há de se levar em consideração o fator estético que se pretende alcançar com a confusão mental das lembranças e que são reproduzidas, de forma igualmente confusa (também propositalmente) na escrita hermética, como se fosse um labirinto linguístico repleto por truques e pistas deixados por Lobo Antunes.

Dessa maneira pode-se perceber que as personagens antunianas estão sempre em uma busca contínua, ou numa batalha contínua, pela linguagem, com a tentativa de construção da linguagem. Podemos pensar que por mais que Lobo Antunes se utilize do real para produzir seus relatos ficcionais, por mais que haja certa incursão no código histórico (guerra colonial), há o retorno ao ficcional.

Daniel Osiecki nasceu em Curitiba (PR), em 1983. Publicou os livros Atmosfera das grutas (2023, compre aqui), Veste-me em teu labirinto (2022), 27 episódios diante do espelho (2021), Fora de ordem (2021), Trilogia amarga (2019), Morre como em um vórtice de sombra (2019), fellis (2018), Sob o signo da noite (2016) e Abismo (2009).

2 respostas

  1. Daniel quem indicou esse autor com a seguinte frase: “É um escritor foda”. Cá estou agarrado nele com olhos e unhas. Grato amigo Daniel. bom te ler.

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