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Em março de 2023, completaram-se 70 anos da morte de Graciliano Ramos (1892-1953), um dos gigantes da nossa Literatura, cuja obra, a partir de 2024, entrou em domínio público. Tentarei discorrer, brevemente, sobre o romance memorialístico Infância (1945/2006), evidenciando a importância das mulheres com quem o menino Graciliano conviveu para a sua educação escolar. Para quem inicia a leitura de sua obra, é quase impossível imaginar como esse romancista, que ocupa um lugar fundamental na Literatura Brasileira, teve imensa dificuldade no processo de alfabetização.

Infância relata como Graciliano sofreu demasiadamente para conseguir ser alfabetizado. A narrativa nos apresenta a história de um menino que, não obstante demonstrar interesse em aprender a ler, possuía enorme dificuldade, uma vez que a educação recebida no ambiente familiar, com a tentativa de aprender as primeiras letras com o pai, constituiu-se numa etapa em que passou por muitos castigos físicos e humilhações impostas pelo progenitor.

Em seguida, também no meio doméstico, com a ajuda de Mocinha, a “irmã natural”, começou a dar os primeiros passos na soletração. Mais adiante, o tempo passado na escola configurou-se mais uma fase de grande sofrimento para aquele que seria considerado, um dia, um dos maiores escritores da Literatura Brasileira. No ambiente escolar, conviveu com professoras extremamente rudes, que utilizavam como método de disciplina, agressões morais e físicas (com exceção de uma professora: D. Maria). Essas professoras possuíam formação deficiente ou mesmo ausência total de formação. Entretanto, a presença dessas mulheres foi relevante na educação do romancista, tanto na família, quanto no ambiente escolar, apesar de os aspectos negativos, predominantes na narrativa, terem deixado marcas indeléveis na vida do narrador.

A educação escolar da época em que Graciliano Ramos foi alfabetizado – a Primeira República (1889-1930) -, além de se apresentar deficiente com relação à formação dos professores, utilizava como método disciplinar punições extremamente humilhantes para as crianças, o que fazia com que estas enxergassem a escola como uma verdadeira tortura. Baseada ainda em regras disciplinares austeras utilizadas pelos jesuítas, que se imbuíam da máxima “a letra com sangue entra” para ensinar, a educação escolar era vista como um grande tormento para os alunos. Nessa perspectiva, também as agressões morais, como afirma Paulo Freire (1996), são práticas que podem ter várias consequências negativas, como por exemplo, a destruição da autoestima dos educandos, interferindo na sua capacidade de aprender: “Sem bater fisicamente no educando, o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no processo de sua aprendizagem” (FREIRE, 1996).

Nesse contexto, tanto na primeira tentativa de alfabetização, inicialmente em casa, como depois com a escolarização do menino Graciliano, vislumbramos um cenário extremamente difícil, com excessivas dificuldades de aprendizagem e também de relacionamento, visto que a agressividade imperava tanto no ambiente doméstico como no escolar. Na narrativa, destacam-se as mulheres que atuaram de forma significativa nesse processo.

As personagens femininas de Infância são muitas, inclusive a mãe do narrador, assim caracterizada: “[…] senhora enfezada, agressiva, ranzinza, […] boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”. D. Maria, a mãe do narrador, não tinha instrução apurada, mas, mesmo com muita dificuldade, lia romances. E é justamente aí que o menino encontraria um dos maiores obstáculos de sua infância: penetrar no universo das letras. As principais  personagens femininas desse livro de memórias de Graciliano Ramos são: D. Maria (a mãe do narrador), Mocinha, a “irmã natural”, D. Maria, D. Maria do Ó, D. Agnelina, (as três últimas, professoras) e Emília, a prima do narrador. O papel dessas mulheres e meninas foi fundamental na vida do menino Graciliano, que chegou até a sentir pavor do ato de ler no decorrer de sua meninice, pelo menos até dominar ou “amansar as letras”, como afirma em uma passagem do texto.

A narrativa de Infância mostra-nos como o narrador aprendeu com o pai as primeiras cinco letras do alfabeto à custa de lágrimas, sofrimento, tendo como “resultado”, as mãos inchadas e vermelhas de tanto apanhar. O pai prontificou-se a alfabetizá-lo, quando notou que o menino via com olhos curiosos as cartilhas de alfabetização que havia em sua loja. “Demorei a atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais […] Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me”.

Com a desistência do pai de ensinar-lhe as primeiras letras, esta tarefa foi transferida para Mocinha, a “irmã natural” do menino. A experiência da aprendizagem com o pai foi traumática devido às agressões fisicas, à impaciência e ao rigor. Isso marcou profundamente a sua vida.“[…] meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração guiado por Mocinha”.

Mocinha é a primeira mulher que aparece na narrativa, como iniciadora do processo de alfabetização do narrador. Não era uma professora com formação profissional e apresentava dificuldades, detendo-se na soletração, entretanto, não demonstrava timidez alguma ao conduzir o irmão na leitura de cartas. Sua relação com o menino é de ternura e proteção, gesto que se concretizava quando ela e a mãe do narrador o protegiam da violência do pai. “Minha mãe e minha irmã natural me protegeram: arredaram-me da loja e, na prensa do copiar, forneceram-me as noções indispensáveis”.

Após as experiências de tentativas frustradas de alfabetização do menino no ambiente doméstico e da prática de soletração com Mocinha, o pai decide colocá-lo na escola. No imaginário infantil daquela época, a escola tinha uma imagem extremamente negativa, pois era um lugar onde os adultos puniam as crianças com as mais severas humilhações e castigos físicos.

Nesse contexto, como afirma Oliveira (2022), cumpre destacar também o papel significativo que desempenhou a mãe do narrador – que, apesar de agressiva, lia romances, mesmo com dificuldade – Mocinha, a irmã natural que sabia apenas soletrar, como foi mencionado anteriormente e as professoras D. Maria – carinhosa e competente -, D. Agnelina – despreparada, porém “boa contadora de histórias” e a prima Emília. Entretanto, é sabido que as mulheres no século XIX e início do século XX, tinham pouco ou quase nenhum acesso à instrução escolar, traço de uma herança do período colonial.

Destacamos aqui a figura de Dona Maria, não a mãe do narrador, mas a professora, cuja prática contrastava com aquela que prevalecia na época. Era uma mulher doce, angelical, de gestos suaves, voz mansa, uma pessoa asseada. Nela não havia manifestações de agressividade. “[…] encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas”. Cuidava da higiene dos estudantes, ouvia-os pacientemente e era a guia das crianças no universo das letras. É comparada pelo narrador à imagem de Nossa Senhora, representando para os alunos, uma “grande ave maternal _ e, ninhada heterogênea, perdíamos, na tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de ovos diferentes” . Além de Mocinha e de Dona Maria, outras personagens femininas de Infância mediaram o aprendizado do narrador: as professoras Dona Maria do Ó e Dona Agnelina. A primeira, “ […]uma das criaturas mais vigorosas que já vi” , extremamente agressiva e violenta, sem motivo aparente, principalmente com a prima do menino, Adelaide. Não dava a devida atenção a todos os alunos. A presença da aluna Dondon “mocinha pálida e misericordiosa”  é que dava algum alento a Graciliano, pois o ajudava, tomando-lhe as lições, corrigindo-lhe a pronúncia e fazendo por ele as contas. Era uma luz em meio a toda aquela rudeza. A segunda professora era, de acordo com o narrador, tão inculta quanto os alunos. Totalmente despreparada para o exercício do magistério. Ademais, lecionava em meio a trabalhos de costura. Apesar disso, mostrava-se como uma boa contadora de histórias: “Essa professora atrasada possuía raro talento para narrar histórias de Trancoso. […] Nada me ensinou, mas transmitiu-me afeição às mentiras impressas” [*].

Sobre a questão do ensino no Brasil da primeira República, segundo Schueler e Magaldi (2009), convém lembrar que as escolas funcionavam em locais improvisados, muitas vezes, desprovidos de higiene e com uma prática pedagógica muito deficitária.

[As escolas brasileiras funcionavam] nos anos finais do século XIX, sob o signo do atraso, da precariedade, da sujeira, da escassez e do “mofo”. Mofadas e superadas estariam ideias e práticas pedagógicas − a memorização dos saberes, a tabuada cantada, a palmatória, os castigos físicos etc. −, a má formação ou a ausência de formação especializada, o tradicionalismo do velho mestre-escola. Casas de escolas foram identificadas a pocilgas, pardieiros, estalagens, escolas de improviso − impróprias, pobres, incompletas, ineficazes (SCHUELER; MAGALDI, 2009). Grifo das autoras

Conforme assinalam Guedes-Pinto e Fontana (2008), muitas das vezes, a escola funcionava na própria residência dos mestres e possuía um caráter informal, no que diz respeito à profissionalização do professor. A escolarização doméstica, também chamada de particular, funcionava em espaços cedidos e organizados pelos pais – as casas de família ou as casas dos professores. O pagamento do professor era de responsabilidade do contratante individual ou de um grupo de contratantes (GUEDES-PINTO; FONTANA, 2008).

Nesse contexto de uma prática pedagógica desestruturada e torturado pelo medo de ser duramente castigado, o pai do menino decide que ele deve ler todas as noites em voz alta na sala da casa. Após passar por mais experiência desastrosa, o menino recorre à Emília, sua prima,  na vez seguinte. Tinha de provar ao pai que não era “maluco” (palavra utilizada pelo pai para se referir ao filho), que ainda seria capaz de ler com fluência. Entretanto, no terceiro dia, o pai desistiu, sem mais nem menos, das noites de leitura. Emília representava, para o narrador, a derradeira chance por meio da qual ele poderia tornar-se um leitor de verdade. A prima inspirava-lhe confiança, era alguém com quem poderia demonstrar sua insegurança, além de ser carinhosa e paciente. “Emília não era deste mundo. Só se zangou comigo uma vez, no dia em que, tuberculosa, me viu beber água no copo dela. Um anjo” .

Com a ajuda da prima, mesmo vivendo num ambiente hostil, suportando as agressões do pai, o menino mergulhou no mundo das letras e dos personagens dos livros, interessou-se por certas narrativas. Emília também o incentivou a ler sozinho, embora ele insistisse que seria incapaz de fazê-lo. Mas a prima estava determinada a mudar o seu destino. “Emília combateu minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam o céu, percebiam tudo quanto há no céu. […] Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, por que não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante de meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?”

As personagens femininas de Graciliano Ramos, em Infância, são construídas a partir de uma força que emana da sua notória fragilidade. Com todas as dificuldades por que passam, aproximam-se da Literatura – como a mãe do narrador – que é a porta de entrada para um mundo desconhecido até então para elas. É dessa aproximação que se vale o menino Graciliano Ramos inicialmente, pois anseia pela possibilidade de conseguir ler. As professoras, sem formação adequada, sem ao menos um local apropriado para ensinar, lecionando em meio a serviços domésticos, de algum modo, esforçavam-se para fazer o seu trabalho. Em alguns momentos, devido ao modo violento com que era tratado, (exceção feita à Dona Maria, a professora que era a “ave maternal”), muitas vezes, sentiu-se confuso: simultaneamente, havia atração e repulsa pelo ato de aprender a ler. O desejo de se alfabetizar caminhava lado a lado com o temor dos castigos físicos, sobretudo, que representavam uma prática corriqueira naquela época.

No entanto, todo o sofrimento que vivenciou para ser alfabetizado não se tornou um obstáculo para que o autor se transformasse num dos maiores prosadores de nossa Literatura, um escritor nordestino que representa “o ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou”, nas palavras de Alfredo Bosi (1993). Para refletir sobre este aspecto, os “estreitos limites” (expressão marcante utilizada pelo narrador de Memórias do cárcere (1953/2008), outra publicação fundamental do autor)  desta coluna desta coluna não são suficientes.


[*] Sobre a questão da ironia na obra de Graciliano Ramos, sugiro consultar Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter, 2022).


Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é Mestre em Letras e Doutora em Estudos de Literatura (UFF/ CNPq). Publicou vários artigos acadêmicos e capítulos de livros. É autora dos livros: Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022) e Dostoiévski e Graciliano Ramos: diálogos (Kotter Editorial, 2024). Contato: abrahaoana19@gmail.com

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