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Atrocidades e “filosofices” dividem espaço nas páginas do romance de estreia “A ascensão”, no qual Rafael Victor faz um corajoso exercício de fabulação

 João Lucas Dusi

 

Que a dicção pomposa do narrador do romance A ascensão (compre aqui), autointitulado César, não engane os desavisados: não se trata de um sujeito preocupado com deixar uma boa impressão na sociedade. É, antes de tudo, alguém em busca de poder e destruição, movido por seu ego saciado somente por confrontos constantes com a morte – com um quê de Patrick Bateman, de repente, o icônico personagem do norte-americano Breat Easton Ellis (imortalizado nas telas, e feito meme nas redes sociais, por meio da interpretação de Christian Bale).

É curioso que o autor da obra, o tocantinense radicado no Paraná Rafael Victor Rosa Oliveira, considere sua própria empreitada ficcional uma egotrip – marca de seu humor, de repente, já que faz piada consigo mesmo por ter escrito sua primeira narrativa de fôlego em uma máquina de escrever, a mesma que agora está utilizando para compor uma viagem literária mais autobiográfica – sem prazo para finalizá-la, uma vez que precisa conciliar seu tempo entre a escrita e o ofício de agricultor orgânico, morando “no cu do mundo” (Tijucas do Sul), feliz por estar distante das pessoas após ter vivido uma rotina maçante de servidor público, mexendo com papelada em escritório. “Uma chatice do caralho!”, afirma o bacharel em Direito e mestre em Literatura Comparada.

Por isso, talvez, por essa chatice do caralho à qual se submeteu inicialmente, haja tanta barbaridade nas páginas do romance editado pela Kotter Editorial. Foi a maneira que o autor encontrou para explorar o significado de justiça e, quem sabe?, deixar sua visão sobre aqueles que detêm o poder de definir a vida dos outros. Há bastante “filosofice” envolvida na coisa toda, aliás, para emprestar um termo utilizado pelo autor na entrevista abaixo – esse mesmo que se considera, vale frisar, “uma espécie de Thoreau fajuto às margens do lago Walden mais Kerouac bêbado na cabana em Big Sur”.

 

Narradores desprezíveis, tão escassos em momento de literatura – supostamente – edificante, são marcantes. Penso no Humbert, de Lolita, e como ele rendeu dores de cabeça ao Nabokov. No teu caso, como foi o processo de elaboração da voz do personagem que se autodenomina César? Teme ser confundido com ele?
São questionamentos que me levam a suscitar outro: é possível separar autor e obra? Tem quem argumente para os dois lados; como quase tudo na vida: uma questão de opinião.

Na academia, alguns teóricos da literatura arrancam os cabelos discutindo isto. Há quem defenda que a obra não pode falar pelo autor, visto que, sendo uma mimese (reprodução da realidade), está fechada dentro de si. Nietzsche dizia que a obra permanece ligada ao autor e sua interpretação depende da conexão com o espírito que a engendrou. Infelizmente, o filósofo alemão não contou com um outro fator: a capacidade humana (leitores) de distorcer – em benefício próprio, de boa ou má-fé – o que se falou. Posteriormente viu-se ligado ao nazismo, o pobre-diabo do Nietzsche. Tem quem defenda que ele foi mal interpretado (de má-fé) pelos nazistas para dar sustentação ao regime e à suposta superioridade da raça alemã, mas Albert Camus, no livro O homem revoltado, via no niilismo nietzschiano o gérmen daquilo que culminaria no nazismo e no comunismo do século XX. Então, partindo da premissa de que, não raras vezes, escutamos o que queremos ouvir e vemos aquilo que mais nos atraem os olhos, prefiro manter autor e obra separados, na medida do possível, é claro, pra não prejudicar nenhum dos dois.

Por isso, não temo ser confundido com o protagonista do meu romance. Se me acusarem de algo, posso dizer: “Calma lá, meu chapa, foi o César quem disse, e não eu”. Brincadeiras à parte, sei que é uma visão difícil de se sustentar (separar autor e obra) em tempos de literatura contemporânea afirmativa, de gênero, autoficção e tipos afins. Muitas vezes, não em todos os casos, vale salientar, dá-se mais importância ao autor do que ao próprio texto. O gênero Romance/Novela, bem sei, é uma ode ao “Eu”, onde a figura do autor alça uma importância estratosférica dentro do contexto da publicação. Mas é isso aí, uma questão de opinião. Tem gente que quer saber mais quem escreveu o livro do que propriamente o que está escrito nele, e julgar a qualidade da obra se fiando no escritor. Sou mais do tipo que gosta de saber o que o texto tem pra me dizer por ele mesmo, de modo que me importo pouco se foi fulano ou sicrano quem o escreveu. Como os antigos, que relatavam histórias e as iam modificando enquanto as contavam ao redor do fogo, em tempos imemoriais, não cogito tanto o “dono” das sábias ou estúpidas palavras que estão sendo narradas.

A obra não está encerrada dentro de si, obviamente, mas isso não nos permite afirmar que ela não pode se ver, em nenhum grau, separada da figura do autor, ainda mais de um personagem só porque ele é narrador em primeira pessoa.

O processo de elaboração da voz deste personagem, César, foi construído a partir dos meus questionamentos acerca da justiça e das instituições responsáveis por garanti-la, ela, a tal da justiça. Figuras que se revestem de conceitos e do cargo pra decidir sobre a vida de outras pessoas, era sobre isso que queria tratar nesse primeiro romance, em partes, quero dizer, porque há mais questionamentos insondáveis da alma humana nessa minha egotrip. Desde os tempos de universidade – tenho formação na área jurídica (me espanto com isso de vez em quando) – achava uma tremenda pilantragem quando meus professores discorriam horas e horas, com uma convicção inabalável, sobre a imparcialidade jurídica, como se os aplicadores da lei não fossem movidos por interesses particulares conscientes e muitas vezes inconscientes, como o pau ou a vaidade, fiquemos nesses dois exemplos apenas pra não nos estendermos muito neste assunto. Se as leis precisam ser interpretadas, pois não se leva em consideração apenas sua parte gramatical em nosso ordenamento, já que o Direito é uma “ciência” social e precisa de fontes externas para auxiliá-lo, pensei, “tá aí uma oportunidade de criar um personagem que, valendo-se dessa lacuna, usa a hermenêutica e o rebolado jurídico pra alcançar seus próprios objetivos”.

Na época, estava lendo uns caras bem esquisitões, o Max Stirner era um deles. Sua visão anarquista individual me ajudou a criar esta persona egoísta ao extremo. Mas vale ressaltar que, além de tudo, um cínico, é o que ele é, o protagonista do meu romance. Ele não acredita em nada, o que lhe possibilita se camuflar de tudo pra alçar seus objetivos. Movido também pela condição do “tudo ou nada” – esta que um personagem dostoievskiano implantou na nossa cabeça e nos fez fritar os miolos quando afirmou: “Se Deus não existe, tudo é permitido” – me aventurei na criação desta figura contraditória, cínica e egomaníaca.

Um pouco de revolta acadêmica e curiosidade metafísica foram as bases da criação deste personagem, o resto foi só masturbação mental mesmo.

A partir de uma abstração de um raciocínio de César a respeito de liberdade, pergunto: fazer literatura, no Brasil, não é uma espécie de consolo tolo, digno aos aspirantes de utopias ocas? O que te faz seguir em frente enquanto ficcionista?
Bom, na maior parte do tempo tenho uma visão pessimista sobre o mundo, de modo que o fazer literário não podia escapar tanto disso. Não que fazer literatura no Brasil (ou em qualquer outro lugar) seja um consolo tolo, é apenas um consolo, e os escritores não são aspirantes de utopias ocas, são tão somente utópicos.

O meu lado negativo vez ou outra me fala: “Uma atividade de malucos sonhadores que desejam transformar o mundo ou compreendê-lo sem tirar a bunda da cadeira (quando escrevem sentados). Mas, afinal de contas, nada muda. Tudo se repete de uma forma ainda mais grotesca do que antes, como se a vida fosse uma novela mal escrita por um sujeito idiota sem nenhuma criatividade, e, afinal de contas, não existe também tanto assim pra se compreender, já sabemos o bastante sobre os seres humanos: vaidosos e trapaceiros, é isso o que eles são e estamos conversados!”.

Só que, se por um lado, escrever é uma forma de se revoltar contra uma “realidade” imutável, por outro, foi a literatura quem me fez questionar o próprio conceito de realidade, quando li o grande poeta espanhol que me disse “La vida es sueño”. Então, neste sentido, o próprio conceito de realidade se torna algo individual ou coletivo, a depender do tanto de cabeças que estejam sonhando um belo sonho juntos, um pesadelo ou uma paranoia (como vimos no Brasil nos últimos tempos, pessoas cantando hino nacional para um pneu, não me canso de rir desses panacas). Por isso, disse que em partes tenho uma visão negativa sobre tudo isso, em partes, porque se a realidade é um sonho, então há outras formas de sonhá-la, a realidade. Se partimos da premissa de que ela não está dada e finalizada, mas que, sendo um sonho em travessia, é uma ilusão em constante transformação, a literatura ganha um poder avassalador quando age de forma subversiva sobre esta ficção que consideramos a maior parte do tempo “real”, destruindo-a, subvertendo-a e reconstruindo-a, a “realidade”.

Vivo neste entre lugar, onde, por vezes, acho que está tudo perdido e não há salvação, nem dentro nem fora da literatura, já que estamos condenados a viver essa grande tragédia que demos o nome de “vida”, isto é, condenados a desempenhar nossos papéis da forma mais convincente possível para não perdemos o ânimo e descobrirmos de que só a morte e os impostos são reais e que todo o resto já se encontra perdido de antemão, mas aí, de vez em quando, me sinto mais otimista e digo pra mim mesmo “calma aí, cara”, “nada é assim tão sério e real quanto pensa”, “Essas verdades que você julga absolutas não passam de ilusões”. E são nesses momentos que me sento na frente da minha máquina de escrever (Dá pra acreditar nisso? Máquina de escrever?) e meto bronca.

Por que sigo escrevendo?

Sou um revoltado e sonhador nas horas em que não estou levando a vida a sério demais.

O discurso do narrador de A ascensão parece influenciado por uma das facetas do niilismo, a da libertação do espírito de rebanho (bem hipócrita, no caso do seu personagem), e o uso de uma frase do Max Stirner como epígrafe parece comprovar esse ponto. A observação procede? Como define a essência do seu César?
É isso aí. O narrador do meu romance é um cara que se aproveita do poder para ascender e alcançar seus objetivos de um jeito bem hipócrita e cínico. Vê nos valores morais e institucionais uma forma de domesticação do ser, na sua concepção, essencialmente orgulhoso. Para ele, a falta de sentido da vida só pode desaguar na dominação ou destruição absoluta do “Eu”. Este, ou domina para ascender acima do bem e do mal e tornar-se ele o único princípio verdadeiro humano, ou sucumbe e deixa-se acorrentar pelos grilhões que fazem das massas ovelhas nas mãos de outros que não se submeteram. O engraçado é que no discurso do narrador a falta de sentindo se torna um sentido (parafuso filosófico): dominar para não ser dominado. Como veio de origem abastada, acha mais do que “justo” defender os privilégios que o mantém acima na escala social, da mesma forma que também acha quase uma obrigação dos pobres alçar-se contra o seu senhor e tomar-lhe o poder. Em resumo, o “Eu” só se liberta na eterna luta para tornar-se soberano de si. Mas o grito solitário deste indivíduo que clama pela harmonia do ser, de uma forma caótica, num mundo sem sentido e indiferente, o levará ao cinismo e ao assassinato, porque se nada é verdadeiro tudo é permitido, desde que os crimes sejam justificados para a ascensão deste “Eu” orgulhoso. E, para encontrar esta justificativa, o personagem se afugentas nas leis que lhes respaldam seus desmandos e abusos.

Outro aspecto da psique deste personagem é que ele vê na morte o único caminho para a libertação deste “Eu” em constante ascensão. Só ela justifica o grito do revoltado contra sua condição injusta. O medo da morte acorrenta os homens, mas se ele se liberta deste pavor, então tudo passa a ser-lhe uma grande aventura, cujo domínio sobre aqueles que se deixaram dominar pelo medo, justifica o seu poder. O Senhor é aquele homem que em tempos antigos ameaçou o outro com uma pedra ou pedaço de pau, ciente de que podia morrer no embate, e o Escravizado, aquele que temeu e abaixou a cabeça, não sabendo se a atitude do rival era um blefe ou mesmo uma ameaça. No fundo, a essência do César representa um certo tipo revolta metafísica de ordem anárquica, mas que, paradoxalmente, o acorrenta ao crime, ao cinismo e à extinção, pois se o “Eu” para afirmar-se precisa destruir, no fim, após esta batalha milenar pela autoafirmação, restará apenas um “Eu” absoluto sobre uma terra despovoada e arrasada. Este senhor soberano e solitário estará condenado a olhar para o horizonte e enxergar apenas a imagem de si, que passará a odiar e desprezar com o tempo. O César está destinado ao suicídio. Ao desejar o tudo, encontra o nada, mas, enquanto isso não acontece, vai se utilizando de todos os meios hipócritas para ascender à morada do seu senhor absoluto, isto é, o seu “EU”.

Tudo isso são filosofices, mas que podem estar transmutadas na cabeça daqueles que detêm o poder. Sujeitos filosóficos não os encontramos todos os dias em abundância por aí, andando pelas ruas ou correndo atrás de ônibus para não chegar atrasado no serviço, talvez até que existam, uns aqui outros acolá, mas cínicos e hipócritas, na alta esfera dos poderes, convenhamos, vemos aos montes – engravatados, sorridentes, gozando de boa saúde e de respeitável opinião pública. Mas é melhor fechar o meu bico e continuar falando de abstrações…

Acenos ao recém-finado Milan Kundera (1929-2023) e ao Macunaíma, personagem de Mário de Andrade, aparecem logo no primeiro capítulo. Quais são suas influências e qual o livro que mais te marcou até hoje?
Sou um tipo bem aleatório pra literatura. Gosto dos grandes clássicos russos, como Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev. Mas também dos existencialistas franceses, Sartre e Camus, por exemplo, e alguns escritores norte-americanos como Jack London, Kerouac e o Hemingway, principalmente pelo modo como escrevem. A Lispector me encantou com o seu Coração selvagem e o Graciliano com as angústias dos seus personagens submetidos à miséria e às desesperanças do semiárido nordestino. O James Joyce e o demiurgo do Sertão, Guimarães Rosa, não preciso dizer nada sobre eles: são mestres atemporais, enquanto o cinismo do Bukowski e do Céline me faz sorrir um bocado ainda hoje. Acho que minhas influências acabam compondo esta salada que acabo de fazer. O livro que mais me marcou, creio que foi o Notas do subsolo, do Dostoiévski. Depois de o ler, fiquei com medo de me olhar no espelho por um bom tempo, com receio de ver o que não gostaria; aquilo assusta e encanta ao mesmo tempo. Uma coisa dos infernos.

Após concluir um mestrado em Literatura Comparada, você se mudou para a área rural a fim de se dedicar à agricultura orgânica. Essa mudança de ares afetou – positiva ou negativamente – seu fazer literário? O que vem por aí?
E como afetou. Só não sei ainda se positiva ou negativamente. Uma coisa não posso negar, embora não encontre mais tanto tempo para ler e escrever, estou tendo uma experiência pra lá de surreal no campo, pois tudo aqui é o oposto do que eu já tinha experimentado até então. De funcionário público com formação em Direito e Pós-Graduação em Literatura Comparada até agricultor é uma distância de vidas, poderia colocar assim, ainda mais com relação à minha em particular, que era bem entediante e corriqueira, encerrada em repartições públicas. Uma chatice do caralho! O contato com a solidão do campo, e o trabalho árduo e extenuante que requer a terra para ser cultivada, estão sendo gratificantes demais para um cara nervoso e hermético como eu, que tinha passado a vida inteira ganhando o pão de todos os dias (que o Diabo amassou) redigindo ofícios e memorandos sem ver sentido naquilo, e ainda por cima tendo de lidar com as mesquinharias, fofocas e burocracias dos nossos órgãos públicos (aquele ambiente tem animal mais peçonhento do que aqui no meio do mato). Em suma, tá sendo ótimo viver distante das pessoas e isolado no cu do mundo, onde vivo atualmente. Uma espécie de Thoreau fajuto às margens do lago Walden mais Kerouac bêbado na cabana em Big Sur: é assim que me sinto.

Com relação à escrita, comecei a datilografar (hipster que ainda usa máquina de escrever) alguma coisa mais autobiográfica dessa vez, diferente do juiz da obra anterior. É mais uma viagem pessoal, que percorre a minha estrada, pois todos a temos, a estrada, né?, às vezes mais sinuosa ou retilínea, dependendo do quão aventureiro você é e cobres tenha na carteira, vale ressaltar. E é isso aí! Quando não estou revirando a terra com a enxada e jogando esterco nela pra ter o que comer, estou escrevendo a minha Ilíada, a minha, se posso assim dizer, bem aleatória e às avessas. Espero terminá-la algum dia, antes de agir como nosso grande Raduan Nassar, que largou as letras e foi mexer com titica de galinha. É um gênio, esse cara! Só um iluminado faria isso.

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