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Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, possui uma fortuna crítica considerável. O romance do defunto-autor Brás Cubas, que, sem poupar quem quer que seja, com muita irreverência, desafia o leitor e dele exige perspicácia para compreender a utilização da ironia para representar a sociedade escravocrata com sua elite afeita apenas ao poder e ao dinheiro, sempre foi alvo de estudo de inúmeros especialistas. “Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia […] A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te um piparote e adeus”.

É esse defunto-autor, cujo relato fará no além-túmulo, que vai se mostrar um playboy insolente e irresponsável durante toda a sua vida. Nesse contexto, destacamos a figura da personagem Eugênia, que, por ser de origem não nobre (segundo a visão preconceituosa do narrador) e por apresentar um defeito físico, é menosprezada por Brás, chamada de “Flor da moita”, de “Vênus manca”.

Brás Cubas, que tinha levado uma vida recheada de aventuras irresponsáveis de um jovem rico e mimado, após perder a mãe, vai visitar dona Eusébia, uma senhora que conhecia desde a sua infância e que fora surpreendida por ele, na ocasião, numa situação embaraçosa para a época: beijava um homem comprometido (o Vilaça) num lugar escondido do jardim da casa dos Cubas. “[…] 1814 ia lá longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça e o beijo da moita” (ASSIS, 2008). Brás se impunha a obrigação de visitar d. Eusébia. Ao chegar à casa da antiga amiga da família, é surpreendido com a presença de uma linda jovem que chamou a sua atenção:

[Dona Eusébia] Confessou-me que era uma velha patusca. Nisso, recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra:

— Mamãe… mamãe… […]

E voltando-se para mim:

— Minha filha Eugênia.

Eugênia, a flor da moita […] olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. […]

E [a mãe] beijo-a com tão expressiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me de minha mãe, e — direi tudo — tive umas cócegas de ser pai (ASSIS, 2008).

Brás Cubas, extremamente preconceituoso, não consegue desvencilhar a figura de Eugênia de sua origem, como destaca Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis (2000), no capítulo “A sorte dos pobres”: “Designa com desprezo a moça nascida fora do casamento, concebida atrás do arbusto, por assim dizer, no matinho. O conflito ideológico [de classe social] do episódio, ao passo que a grosseria do trocadilho anuncia os extremos a que a narrativa irá”. De um lado está Brás Cubas, que vem de uma família medíocre, porém abastada; de outro, está Eugênia, uma moça “de condição inferior”, ou seja, pobre e concebida em circunstâncias que a colocavam numa posição de pessoa “malnascida”, na visão discriminatória do jovem.

Após um breve namoro com a moça, a Brás Cubas é revelada, pela própria Eugênia, a questão da deficiência física, o que, para alguém como ele, serviria de justificativa suficiente para que se afastasse da jovem e a considerasse inepta para ser sua futura esposa.

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:

— Não, senhor, sou coxa de nascença. […]

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranquilos. Creio que duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados; mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos (ASSIS, 2008).

Cabe destacar também o modo como Brás se refere à moça, de maneira totalmente abjeta, logo após a descoberta de sua deficiência física. “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! […] Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?” (ASSIS, 2008). Como destaca Bosi, “O terror, que no caso melhor se chamaria covardia, logo venceu a piedade, como seria de prever em um caráter como o de Brás, tangido pelo princípio do prazer e pela correlata aversão a praticar qualquer sacrifício que a consciência pudesse lhe exigir” (BOSI, 2006). Mas, apesar de toda a insolência do narrador, até mesmo pelo olhar de Eugênia, altivo e sem temor, fica clara a sua postura muito digna, o que causa estranhamento ao rapaz rico, pois, para Brás Cubas, não seria possível haver dignidade numa pessoa com “nascimento irregular e situação precária”. No entanto, Schwarz ressalta que Eugênia não era “propriamente pobre. Educada na proximidade do mundo abastado, ela pode até fazer um bom casamento e vir a ser uma senhora” (SCHWARZ, 2000, grifo nosso).

Brás, assumindo para si mesmo a sua desfaçatez, seu preconceito de classe, sua soberba de jovem rico e, por isso, de origem “superior”, “comunica a Eugênia a sua partida iminente, fazendo-o por meio de palavrinhas doces, mas frias, de cuja hipocrisia ele tem plena consciência” (BOSI, 2006). Descreve a cena em que beija Eugênia e percebe que a moça está apaixonada por ele, não sem antes insinuar claramente que Dona Eusébia desejava que a filha se casasse com alguém de condição financeira mais elevada:

Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava-lhe a alma em flor.

— O senhor desce amanhã? — disse-me ela no sábado.

— Pretendo.

— Não desça. […]

Foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia – o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem… (ASSIS, 2008).

Mas Eugênia se manteve íntegra, ciente de que aquele homem rico não desposaria alguém como ela, apesar do comportamento dissimulado de Brás, que tentava demonstrar, no ápice de sua hipocrisia que se importava com a sorte da moça.

“Levanta-te e entra na cidade.” Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a esse motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na seguinte manhã viria para baixo.

— Adeus — suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade —; faz bem. E como eu nada dissesse, continuou: Faz bem ao fugir do ridículo de casar comigo. Ia dizer-lhe que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.

— Acredita-me? Perguntei eu no fim.

— Não, e digo-lhe que faz bem.

Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império (ASSIS, 2008).

Brás despreza Eugênia muito mais pela origem da moça, por sua “inferioridade” do que pelo fato de ser coxa. Diante de tanto cinismo, desfaçatez e preconceito de classe, vemos que, para o jovem abastado, na sociedade escravista, tudo é permitido. Eugênia representa a situação das mulheres e dos homens livres e pobres no Brasil da escravidão. Quando Brás revê Eugênia muito tempo depois, a moça está vivendo num cortiço. Portanto, de que “depende o desfecho [dessas histórias de mulheres livres e pobres]? Da simpatia de um moço ou de uma família de posses. Noutras palavras, depende um capricho da classe dominante […] o seu acesso aos bens da civilização, dada a dimensão marginal do trabalho livre se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da classe abonada” (SCHWARZ, 2000), ou seja, essas pessoas deveriam submeter-se a um favor pessoal de alguém da classe abastada, uma vez que esta era a única via que poderiam trilhar se desejassem para ascender socialmente.

Eugênia é marcada por um duplo estigma, levando-se em conta a realidade de um país que era uma ex-colônia, além de ser marcado pelo regime escravocrata: é fruto do relacionamento de uma mulher que não é rica com um homem que não assumiu a relação; e possui uma deficiência física. Diante de todo o preconceito e cinismo do jovem rico Brás Cubas, que esperava da moça pobre e deficiente física a sujeição, a súplica e a humilhação, Eugênia não se comporta de modo ingênuo e se mantém de pé, altiva (olhar “de império”), não aceita “vender” a sua dignidade.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF/ CNPq). Publicou vários artigos acadêmicos e capítulos de livros. É autora do livro Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

2 respostas

  1. Excelente o retorno à visão colonialista e discriminatória que existia (e teima em persistir), tão perfeitamente posta pelo autor.

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