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Na coluna anterior, destacamos a prosa da escritora Conceição Evaristo, com o conto “Olhos d’água”. Hoje trazemos aqui o poema “A menina e a pipa-borboleta”, do livro Poemas da recordação e outros movimentos (2021).

Tanto a prosa quanto a poesia de Conceição Evaristo possuem como princípio a expressão do olhar da mulher negra, inserida numa sociedade racista, ainda com traços de caráter escravocrata e colonial. A Literatura de Evaristo envereda pelos caminhos da memória, produzindo uma escrita de denúncia e de resistência, especialmente no que se refere à questão da violência sofrida pelas mulheres negras.

Em “A menina e a pipa-borboleta”, a criança que desfrutava de um momento de diversão e alegria, repentinamente experimenta uma situação de violência bruta, o que é um exemplo desse contexto cruel e perverso.

 

A menina e a pipa-borboleta 

A menina da pipa
Ganha a bola da vez
E quando a sua íntima
Pele, macia seda, brincava
No céu descoberto da rua,
Um barbante áspero,
Másculo cerol, cruel
Rompeu a tênue linha
Da pipa-borboleta da menina.

E quando o papel, seda esgarçada,
Da menina estilhaçou-se
Entre as pedras da calçada,
A menina rolou
Entre a dor e o abandono.

E depois, sempre dilacerada,
A menina expulsou de si
Uma boneca ensanguentada
Que afundou num banheiro
Público qualquer (EVARISTO, 2021).

 

Quando lemos o título do poema, logo nos remetemos à imagem de uma menina que, usufruindo de um espaço lúdico de descontração e de liberdade, assim permanecerá, uma vez que brincar constitui um direito fundamental de qualquer criança, ou pelo menos dessa forma deveria ser.

Entretanto, a partir do sexto verso da primeira estrofe, é utilizada uma metáfora impetuosa para retratar um ato covarde e monstruoso: “um barbante áspero,/ másculo cerol, cruel/ rompeu a tênue linha/ da pipa-borboleta da menina”. Nesse momento, a menina sofre uma violência sexual. Na segunda estrofe, temos a representação de todo o sofrimento da criança que se vê só e desprotegida, como imaginamos que deva ser o padecimento de alguém que seja vítima de tamanha brutalidade: “entre as pedras da calçada/ a menina rolou/ entre a dor e o abandono”. No fechamento do poema, essa menina que agora se tornou uma mulher por meio de um ato rude e desumano, sente uma angústia profunda que a acompanhará por muito tempo ou até mesmo pelo resto da vida.  “E depois, sempre dilacerada”. A seguir, nesse contexto de dor, lança-se mão de outra metáfora. Emerge uma temática cuja discussão ainda é tabu na sociedade brasileira: o aborto.  Não fica claro para o leitor se o aborto foi provocado ou não: “a menina expulsou de si/ uma boneca ensanguentada/ que afundou num banheiro/ público qualquer”. Um feto que era fruto de um estupro, foi abortado pela menina, e, pelo o que se pode inferir, essa gravidez não era desejada por ela. A título de esclarecimento (já que discorrer sobre o tema não é objetivo desta coluna hoje), é importante observar que a prática do aborto no país sempre existiu, segundo a pesquisadora e historiadora Mary Del Priore (1993): “Textos de cronistas e médicos entre os séculos XVI e XVIII já comentavam o fato”. “Ao tentar livrar-se do fruto indesejado, as mães acabavam por matar-se. O consumo de chás e poções abortivas acabava por envenená-las”. Ou seja, as mulheres corriam grave risco de morte, como as mulheres pobres de hoje. Outro ponto relevante a elucidar é que a população negra feminina é a mais atingida por vários tipos de violência, como declarou a defensora pública do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento ao Patrícia Galvão Podcast, do Instituto Patrícia Galvão, cuja fonte é o dossiê Mulheres negras e justiça reprodutiva, da organização Criola (2020/2021): “Não tenho dúvida de que as mulheres negras, pretas e pardas, são as mais afetadas por conta do racismo estrutural. As violências mais graves, dentre elas o estupro, as violências sexuais, o feminicídio e o homicídio são praticados contra elas. Este grupo é o mais vitimizado. Os dados mostram que as mulheres negras não acessam as políticas públicas de bem-estar social, têm menos acesso à informação e que provavelmente vão ter mais medo de buscar as instituições da segurança pública, do sistema de justiça, para ver garantido um direito, quando esse direito é violado”.

A temática da violência sexual contra as mulheres negras no Brasil nos remete à questão da escravidão no país que perdurou por mais de três séculos e especialmente ao problema das mulheres escravizadas que eram obrigadas a trabalhar dentro e fora da casa grande, além de “servir sexualmente” aos seus “senhores”. Na sociedade atual, a situação também é muito grave se levarmos em conta que as mulheres negras são as mais vulneráveis a situações de opressão e de violência, como ressaltou a defensora pública.

É nesse contexto que a obra de Evaristo vem dar voz às mulheres negras e também às meninas, vítimas ainda mais fragilizadas, por meio de uma escrita da memória, como nos versos do poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, dedicado à historiadora e ativista negra Beatriz Nascimento, vítima do feminicídio. “A noite não adormece/ nos olhos das mulheres,/ a lua fêmea, semelhante nossa,/ em vigília atenta vigia/ a nossa memória”. Diante do dramático problema do processo de apagamento da memória do povo negro, sobre o qual falamos na coluna anterior, a escrita de Evaristo ecoa como um clamor de resiliência.

Para finalizar, salientamos que, no poema “A menina e a pipa-borboleta”, o eu poético está imbuído de uma clara consciência de seu papel histórico na sociedade onde vive. A escrita da autora é moldada por uma potência que se constrói no equilíbrio entre o lirismo e a força bruta, com a qual as mulheres negras são forçadas a lidar, num pais tão racista e violento como o nosso.  Como destaca o professor e pesquisador Eduardo de Assis Duarte (2007): “Os versos enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza os escritos de Conceição Evaristo”. A obra de Evaristo trava uma luta incansável no empenho de não permitir o apagamento da memória do povo negro, além de não se curvar diante do domínio da opressão e do racismo.

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF) e autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

2 respostas

  1. Maravilhosa esta coluna! Bom ter pessoas cultas envolvidas na causa do enfrentamento das questões raciais no Brasil!…especialmente quando esse olhar vem do e exercício de empatia do escritor! Parabéns!!!

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