Search

Nas páginas iniciais de Salvar o fogo (Todavia, 2023), romance do premiado escritor baiano Itamar Vieira Júnior, que captura a atenção do leitor de forma arrebatadora, encontramos um povoado formado por pessoas afro-indígenas, que são duramente exploradas, vivem uma condição de vida miserável, numa Tapera, sendo obrigadas a pagar uma espécie de “imposto” para os monges da Igreja católica, que reivindicava a posse daquelas terras.

O mosteiro era uma construção antiga erguida entre o rio e as ruas da Tapera. Toda a vida da aldeia acontecia em seu entorno: as referências, o tempo a história, era como se nada tivesse existido antes do mosteiro […]  Março era o mês de aflição para as famílias da Tapera. Era o tempo de pagar o foro à Igreja. A cobrança não era feita pelos monges, mas por vizinhos com posição privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a caligrafia precária de quem era pouco escolarizado. Esse recibo com o carimbo e pago se tornava um documento valioso guardado pelas famílias. Tinha a importância de uma escritura, ainda que não tivesse valor algum (VIEIRA JR., 2023,  p. 27; 35).

No começo da narrativa, em se que antecipa uma situação da protagonista, que marcará para sempre a sua vida, deparamos com uma menina, uma adolescente, que, após esconder a gravidez da vizinhança, no povoado muito pobre onde morava, a Tapera do Paraguaçu, no interior da Bahia, tenta parir um bebê às escondidas da família, às margens do rio Paraguaçu, – que também é um personagem na narrativa, pois suas águas “não lavaram apenas a roupa da Tapera, dos donos das terras e dos padres. Lavaram nossas mágoas e renovaram nossos sonhos […] e carregavam os segredos que não poderiam ser contados” (p. 155-156). A intenção da adolescente era de deixar a criança seguir com a correnteza. “Quando a criança enfim nascesse, a entregaria às águas. Que o rio cuidasse de sua cria. Que a correnteza a levasse para bem longe” (p. 14).  Entretanto não logrou êxito em seu intento. A criança nasceu e foi salva pela irmã da adolescente que impediu o afogamento do bebê.

No decorrer da história, o leitor vai descobrir que a adolescente é a personagem Luzia, – uma jovem que vai se tornar lavadeira no mosteiro no decorrer da narrativa e que possui duas irmãs, Isaura; Mariinha, e três irmãos, Joaquim, Humberto e Raimundo – e que este filho (Moisés, cujo nome é mencionado apenas no capítulo II da primeira parte, pois é chamado apenas por Menino) não desejado era fruto de um ato de violência, cuja concretização só se deu por certa ingenuidade da adolescente e pelo apelo (também ingênuo e desesperado) da mãe, que incentivou a filha a se relacionar com um homem desconhecido, de pele mais clara que a de sua família que apareceu na Tapera, na esperança de fugir da vida miserável e sem perspectiva. “E minha mãe, minha mãe catando os fiapos da vida diante da beira da derrota, minha mãe um dia reparou num homem vistoso e gentil me cercando de cima de seu cavalo. Ademais, havia também na casa da família de Luzia vários debates sobre a questão da “barriga limpa” (p. 32), ou seja, numa acepção de cunho racista, embora não tivessem a mínima consciência em relação a essa questão. Essa expressão significa gerar uma criança mais clara e com cabelos lisos. ‘É preciso melhorar a raça, Luzia, é preciso se antecipar às moças da Tapera que põem olho grande nos forasteiros’, ela me disse” (p. 105). Esta criança é o personagem Moisés, que escapa da morte graças à intervenção da irmã de Luzia, Zazau.  Essas famílias brutalizadas pela sua história e pela miséria extrema são constantemente atravessadas pela violência. Esse contexto em que se desvaloriza a raça negra devido ao racismo estrutural[1] entranhado em nossa sociedade, nos remete ao quadro do pintor espanhol Modesto Brocos, “A redenção de Cam” (1895), em que é representada uma família formada por um casal inter-racial – um homem branco e uma mulher negra. Fica em evidência a pele mais clara do filho do casal e o gesto da avó, uma mulher negra que levanta os braços, como a agradecer aos céus pelo fato de o menino ter nascido com pele mais clara, como se fosse uma espécie de salvação para o menino não ter nascido com a pele negra (a “barriga limpa”).

Atravessando toda a história, emergem questões sociais, de gênero e econômicas que trazem à tona as mazelas ainda muito presentes no país, tais como a luta pela posse da terra, a exploração dos ricos e da Igreja, a misoginia, a exclusão das populações afrodescentes e indígenas, o racismo explícito revelando sua face mais cruel.

Moisés é o narrador da primeira parte do romance.[2] Pensa ser filho da mãe de Luzia, Alzira (na verdade, sua avó) e, portanto, irmão dela. Luzia o “acusa’ de ser o responsável pela morte da mãe. Esta mentira é sustentada ao longo da narrativa “Caí feito um fardo sobre suas costas depois da morte da mãe” (p. 17). Moisés e sua irmã Luzia vivenciam uma relação difícil que se caracteriza sobretudo por um misto de medo e admiração do menino em relação à suposta irmã mais velha “Não poderia desobedecer de todo as suas ordens”. Alzira assumiu a maternidade de Moisés, uma vez que o marido deixou a esposa e passou um tempo fora.

É através de Luzia e Moisés e Mariinha que o autor dá voz às pessoas miseráveis que vivem em condições desumanas.

Em meio a toda esse cenário de miséria, a dominação e a prepotência sem fim dos poderosos – sobretudo a Igreja e os grandes proprietários de terras,  vivendo naquela situação de vulnerabilidade extrema, Luzia teve um filho ainda na adolescência, segredo que tentou ocultar de parte da família (até mesmo de Moisés, a criança) e das pessoas que com ela conviviam na Tapera e que a odiavam por razões de cunho supersticioso.

 A certa altura do romance, aparece uma corcunda nas costas de Luzia. Mais uma razão para ser hostilizada pelas pessoas que moravam na Tapera e era também motivo de vergonha para Moisés, quando criança. “Mas era das costas de Luzia que se elevava um pequeno monte, uma corcunda e eu sentia vergonha” (p. 20). Moisés, numa traquinagem, incendeia a própria casa e tem medo do castigo que Luzia vai lhe aplicar, mas se surpreende coma atitude da irmã. “diante de Luzia havia um pedaço de madeira crepitando. Uma fagulha em meio à brasa. Ela parecia enfeitiçada. Carregou a tocha até a porta. Mas, antes de sair, abriu a boca e engoliu o fogo, como se precisasse guardá-lo” (p. 22)

Na segunda parte do romance, Luzia, já mais amadurecida, é a narradora. Passa por uma transformação. “A Luzia medrosa, a Luzia obediente à aldeia, essa Luzia morreu. […] O mosteiro é incendiado, e naturalmente, os moradores da Tapera culpavam Luzia. “A Tapera levantou-se contra mim de novo […]  As histórias que contavam sobre minha vida, entre a menina e a velha que me tornei, eram falatório de gente mexeriqueira. [Desde menina] aprendi a temer o povo da Tapera. Ensinada por eles, aprendi a ter medo de mim mesma. Diziam que eu guardava o Mal. Só Cristo, filho de Deus poderia me curar dos espíritos daninhos. […] um incêndio consumiu a igreja.[…] o bastante para me acusarem outra vez de feitiçaria” (p. 100).

Luzia sentia um grande arrependimento por não ter acreditado na justificativa de Moisés para não frequentar mais a escola do mosteiro, situação retratada na primeira parte do romance. O menino sofria abuso sexual dentro do mosteiro e o abusador era o abade Dom Tomás. Moisés, uma criança carente de carinho, a princípio, ingenuamente, aprecia os gestos do abade, sem ter a noção das verdadeiras intenções do monge.

Dom Tomás segurava meu pescoço. Era um toque cordial, como os que não recebia em casa, como os que não recebia em casa.  Quando passei a ser chamado com frequência, o medo deu lugar à espera. O bem-estar se confundia com a inquietação e já não desviava meu pescoço das mãos de Tom Tomás, com medo de que fosse apertá-lo (p. 58).

Moisés, estando mais crescido, decide ir embora da Tapera. “Deixei a aldeia em direção à capital com dinheiro que Luzia guardava embaixo do colchão, a roupa que carregava no corpo e uma pequena sacola amparada por meus pés durante a viagem […] Saí sem olhar para trás. […] Na aldeia, só se poderia sonhar em ser lavrador, pescador, professor ou padre” (p. 70; 71; 79)

Manaíba, a terceira parte do romance é narrada em terceira pessoa e relata a história de Mariinha ou Maria Cabocla, umas das irmãs de Luzia. Quando voltou à Tapera devido ao adoecimento do pai e posteriormente a sua morte, sentia-se livre, de um jeito como nunca antes, pois o marido já havia morrido e os filhos estavam crescidos. “Um leve arrepio antecipando a sensação de liberdade. Era a primeira vez que viajaria sozinha, sem o marido determinando o que fazer e sem nenhum dos filhos para vigiá-la” (p. 187). Mariinha saiu de casa muito jovem e levou uma vida de muitas dificuldades, sofrendo até mesmo violência doméstica por anos a fio. Sacrificou-se em silêncio – como, aliás, procedem muitas mulheres – para não sobrecarregar a família com mais problemas: “Nunca havia contado a Zazau ou à Luzia que apanhava do marido. Quando se nasce em meio à miséria, não se deve alimentar o desespero de sua gente com mais histórias de desgraças” (p. 221). Depois de viúva é que começa se sentir realmente livre, pela primeira vez na vida,- livre, sobretudo da presença do marido violento – podendo até mesmo voltar à Tapera para rever a família.

Depois que Mundinho, o pai, morre, apenas Mariinha fica com Luzia por um tempo na Tapera. Ainda no fim dessa parte, a questão da disputa pela terra, contenda que sempre ou quase sempre dá a vitória a quem tem mais poder e dinheiro, vai emergir no fim da trama de modo muito contundente. Luzia decide trabalhar na roça que era do pai falecido. E para lá segue com a irmã Mariinha decidida a continuar o trabalho, entretanto, depara-se com alguns homens que afirmam que a terra pertence a outra pessoa. Luzia os ignora, uma vez que a terra que ocupa um dia pertenceu aos seus antepassados indígenas. Por isso sabe que a luta está apenas no seu início. “Agora ela só queria demarcar seu pedacinho de mundo, como se faltasse o rito para entenderem que aquele chão era seu por direito e ancestralidade. […] Luzia não olhou para trás e continuou a abrir a cova com a enxada” (p. 248; 250).

A última parte do romance, “A alma selvagem”, é narrada também em terceira pessoa. Um narrador mais distante, onisciente, que conta a trama, acaba de tecer os fios soltos que Luzia e Moisés deixaram. Nessa parte final do romance, Luzia passa por um processo de autoquestionamento no que se refere à noção que possuía de maternidade. Afinal, poderia ou não se considerar uma mãe, se sempre tratou Moisés com extrema rudeza e sempre tendo em mente que ele representava um peso em sua vida? Esse ato de cobrança consigo mesma é representado no romance através da utilização do discurso indireto livre. “Vigiou com cuidado e responsabilidade todas as vezes que ele adoeceu. Defendeu e protegeu quando ele foi atingido por uma pedra dirigida a ela. […] Não eram poucos os sinais de dedicação destinados ao Menino” (p. 309)

Luzia carrega marcas em seu corpo, a corcunda, e outros sinais do avançar da idade: “os vincos na sua face lhe conferem um ar de mulher mais velha, embora esteja na meia-idade. A trança deu lugar a uma cabeleira vasta, cacheada e grisalha” (p. 306). Luzia se prepara para enfrentar quem sempre a acusou e a humilhou na Tapera e também os homens que querem impedi-la de cultivar a terra que era do pai. Para isso, tece um manto, o manto Tupinambá, que um dia pertenceu aos seus antepassados indígenas. “Ao levantar os braços, se tornará um grande pássaro vindo do mundo dos mortos, e seus olhos refletirão o fogo que é vida e a habita desde sempre. […] Seu nome é coragem e já não teme a morte” (p.317). No romance, o fogo é a energia de vida de Luzia, que enfrenta uma avalanche de adversidades – miséria, exploração e humilhações -, mas não desiste de lutar.

 Em Salvar o fogo, Luzia, sua família e todos os que moram na Tapera viviam à margem de quaisquer políticas públicas implementadas pelo Estado e até mesmo à margem do conhecimento de quem comandava o país na história, como afirma o autor.  “Para pessoas que vivem em lugares mais remotos, pouco importa quem está no poder, porque o Estado não chega ou custa muito a chegar”.  Por essa razão, Itamar destaca a importância da arte literária para uma maior tomada de consciência em relação aos direitos dessas populações marginalizadas, uma vez que houve um silenciamento deliberado dessas vozes, durante séculos: “A Literatura tem o poder de nos restituir histórias que nos foram roubadas” (VIEIRA JÚNIOR, 2023).


[1] Para um aprofundamento no tema, sugiro a leitura de Racismo estrutural, de Sílvio Almeida (Pólen, 2019).

[2] . Itamar Vieira Júnior afirmou em entrevista que seus livros possuem forte influência da literatura do escritor norte-americano Willian Faulkner (1897-1962), cuja obra, dentre suas características mais marcantes, destaca-se a construção de narrativas com mais de um narrador.  Para Itamar, “ a narrativa pode crescer se tiver essa polifonia, esses inúmeros olhares sobre a mesma história” Disponível em:   https://www.youtube.com/watch?v=lCb8NtHhzd0&t=963s   As demais citações com a fala do autor estão também nesta entrevista.


Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é Mestre em Letras e Doutora em Estudos de Literatura (UFF/ CNPq). Publicou vários artigos acadêmicos e capítulos de livros. É autora dos livros: Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022) e Dostoiévski e Graciliano Ramos: diálogos (Kotter Editorial, 2024). Contato: abrahaoana19@gmail.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *