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O calhamaço “Um mal-estar fundamental”, com suas mais de 1.400 páginas, dá rosto à barbárie humana ao reunir um sem-fim de pensamentos violentos e distorcidos 

João Lucas Dusi

 

O horror e o entusiasmo serviram de combustível para Álamo Enfant – heterônimo de Rafael (somente Rafael, sim), conforme aparece na orelha do romance Um mal-estar fundamental (compre aqui) – elaborar uma história sobre a inadequação diante da existência. São mais de 1.400 páginas em que “todos os instintos mais primitivos, os fetiches mais perversos afloram num tom tragicômico, picaresco”, de acordo com o editor da obra, Claudecir Rocha, o primeiro a encarar o calhamaço e dar o veredito: “Sim, trata-se de um acontecimento literário”.

“Tudo que eu colocaria nas páginas, tudo que eu empregaria para a história, seria torto, sujo, doentio, febril, exasperado”, diz a voz por trás do heterônimo, na entrevista abaixo, cujos maus bocados experienciados nos idos de 2017 alimentaram sentimentos estranhos. Ou seria o próprio Álamo quem viveu de dinheiro emprestado, deveu para agiotas e, devido ao estresse, foi acometido pela loucura? Supõe-se que o leitor deve decidir. Independentemente dessas miudezas, que devem ser exploradas futuramente pelo site O Fuxico, é um fato que a “aflição medonha” da qual fala o entrevistado pode ser sentida em cada uma das dezenas de histórias que compõem toda mitologia do decadente vilarejo, verdadeiro retrato do que se imagina o inferno, no qual a narrativa se passa.

 

São inúmeras e criativas as histórias que compõem a mitologia do local em que se passa o romance. Como foi o processo de criação? 

É preciso dar vários passos atrás para contar o começo de tudo. Era 2017, eu estava passando por um período de extrema pobreza (vivendo de dinheiro emprestado, devendo agiotas, com a luz do apartamento cortada, coisas do tipo), além disso, devido ao pico de estresse pelo qual passava, desenvolvi o que foi chamado pelo meu médico de comorbidade psiquiátrica. Um quadro em que diversas doenças mentais somam-se e eclodem devido ao ambiente em que vivia. A doença fez com que eu prestasse atenção na gênese dos meus pensamentos, na forma como eles pululavam e saíam transtornando todo o resto da minha mente. Uma aflição medonha que durou muitos anos. Foi ao longo desse processo de auto-observação que me surgiu a ideia de escrever um livro sobre a inadequação. Tudo que eu colocaria nas páginas, tudo que eu empregaria para a história, seria torto, sujo, doentio, febril, exasperado. Decidi, portanto, contar tudo que havia acontecido comigo. Não de uma forma esperada: falando da minha loucura e esse monte de coisa. Mas criando um cosmo, desenvolvendo dezenas de eus, como uma forma de espelho no qual me via refletido com horror e entusiasmo.

Não havia esperança para mim naquele tempo, para ser sincero. Pensava que a minha vida havia acabado. A loucura faz a gente pensar que não se pode viver com ela. Então decidi, selando um compromisso comigo mesmo, escrever da forma mais honesta e visceral que conseguisse, simplesmente “vomitando” aquele monte de pensamentos distorcidos e violentos. Mas, incialmente, não conseguia dar seguimento – a loucura não deixava. Foi apenas em 2020, com a pandemia, quando encontrei um médico que me diagnosticou e me deu os medicamentos necessários, que dei início a este projeto. Eu tinha apenas a ideia de ser honesto e visceral, nada mais do que isso. Tudo além, todo o espaço em branco, era um ambiente de improvisação. Não sou o tipo de escritor que se planeja, que escreve esqueletos do romance, coisas desse tipo. O que me interessa em produzir a história é justamente não saber da história. Para se ter uma ideia, eu planejei o final do livro faltando duas semanas para terminá-lo. Até então, não tinha ideia do que iria fazer.

A dicção do livro é muito própria. Quais escritores ocupam seu imaginário e como chegou a esse estilo?

Há diversos escritores que são incontornáveis quando se pensa em produzir algo destas dimensões, como Pynchon, Bolaño, Sterne, etc. Mas a minha obsessão literária, o livro que esteve ao meu lado durante todo o período de escrita, foi “Viagem ao fim da noite”, de L. F. Céline. Na minha visão, literatura é um espectro no qual oscila entre dois polos extremos, o da violência e o da ternura. Céline utiliza esse espectro como ninguém. Sou completamente apaixonado pelo trabalho dele. Sem Viagem ao fim da noite, Um mal-estar fundamental jamais teria existido.

A loucura faz a gente pensar que não se pode viver com ela. Então decidi, selando um compromisso comigo mesmo, escrever da forma mais honesta e visceral que conseguisse, simplesmente “vomitando” aquele monte de pensamentos distorcidos e violentos.


Há todo tipo de perversão e desgraça no seu livro, com descrições suportadas somente por quem tem estômago forte. Sua obra tem espaço em um mercado que dispõe até mesmo do chamado “leitor sensível”?

Claro que sim! Sou extremamente otimista neste ponto. Não penso que as pessoas se importem em ler algo classificado como “pesado” ou “leve”. O que marca um leitor é estar em face de um texto autêntico. Isto que busco em cada palavra. 

Acha que o teor da sua obra pode render um belo cancelamento? Preocupa-se com isso?

Sinceramente, do jeito que as coisas andam, não duvido. Sobretudo de trechos tirados do contexto e transformados em um tuíte. Mas nem de longe é uma preocupação. Sei o que passei para produzir este romance. Não será o politicamente correto que vai me assustar.

A maioria [dos livros com mais de 300 páginas, hoje em dia] é previsível, desestimulante e esquecível.


Alguém que escreve um livro de mais de 1.400 páginas pensa comercialmente? Ou acredita mais em uma espécie de “arte pela arte”? Enfim, como enxerga o fazer literário?

Penso que há um amplo mercado sedento de obras autênticas e desafiadoras. Hoje vivemos nos tempos da plasticidade. É bem difícil, atualmente, encontrar um livro que tenha mais de trezentas páginas que seja ao menos um tanto instigante. A maioria é previsível, desestimulante e esquecível. Parece que os escritores estão pensando em hashtags, em textos para o Instagram, em viralizar no TikTok, isto tudo pode até ter algum resultado no curto prazo, mas são obras esquecíveis porque não marcam o público. Como disse anteriormente, um livro pesado ou longo pode dar um “susto” inicial, mas o que fica é a honestidade da história, os pontos de contato entre a prosa e o leitor.

O pseudônimo foi uma maneira que encontrou para se distanciar das barbaridades narradas no romance? A escrita, para você, é uma espécie de atuação?

De forma alguma. Álamo Enfant não é um pseudônimo, mas sim um heterônimo. Tenho outros heterônimos que escrevem de maneiras completamente diferentes. Cada qual tem a sua personalidade e idiossincrasias. A criação de heterônimos foi uma forma que encontrei de dar vazão aos tantos narradores que existem na minha cabeça. Cada qual sempre muito diferentes entre si, em nacionalidades, sexo, idade, etc. Para mim, a escrita deve ser combativa, de jeito algum uma atuação. Não admiro escritores que produzem de forma dissimulada. Gosto e me inspiro em autores que pedem “pelo amor de Deus”. E isto só é possível através do sofrimento, honestidade e transparência.

LEIA TRECHO DO LIVRO UM MAL-ESTAR FUNDAMENTAL

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