por Nicodemos Sena
Muito difícil falar ou escrever sobre a Amazônia, mesmo para quem nela nasceu e cresceu. Por sua vez, “o europeu geralmente se perde quando quer colocar a ficção no imaginário amazônico”, reconheceu o escritor e crítico literário francês Jean Soublin, em mesa-redonda sobre “o real e o imaginário na narrativa amazônica”, da qual também participei no já longínquo 23 de setembro de 2001, na V Feira Pan-Amazônica do Livro de Belém.
Autor de “Histoire de l’Amazonie” (Editora Assai), lançado na Feira, Soublin fez um inventário da ficção e quase-ficção produzidas por europeus na Amazônia, até o começo do século XX. E nada melhor do que um europeu para apontar as dificuldades que o estrangeiro enfrenta para compreender a autêntica “índole” do ser amazônico. Até o século XIX, praticamente, só europeus haviam escrito sobre a Amazônia, começando pelos cronistas Vicente Carvajal, Cristóvão de Acuña, São José Queiroz, João Felipe Bettendorff, João Daniel; passando aos historiadores e cientistas Luiz e Elizabeth Agassiz, Frederick Hartt, Alfred Russel Wallace, Hercules Florence, Von Martius e Spix, Avé-Lallemant, Charles-Marie de La Condamine, até chegar aos europeus que, mais do que inventariar ou noticiar as maravilhas da nova terra, ousaram contar, de modo “artístico”, as coisas que viram.
Jean Soublin, nesse ponto, lembrou do inglês Conan Doyle e dos franceses Júlio Verne e Émile Carré, de cujas páginas de ficção inspiradas na Amazônia não se pode afirmar que sejam o ponto alto de suas obras. Lembrou, também, do alemão Von Martius, que, com base em material colhido em suas andanças pela Amazônia, na primeira metade do Século XIX, aproveitando um momento de folga do seu trabalho de naturalista, escreveu “Frei Apolônio” (Editora Brasiliense), o primeiro romance ambientado no Norte do Brasil. Curioso que, até 1967, os originais desse livro permaneceram trancados pela família de Martius, sendo descobertos por pesquisadores da Bavária. A despeito dos defeitos de composição literária, esse livro, ainda hoje, pode ser lido com interesse, pois Martius, que amava a Amazônia, era um excelente pintor de paisagens e costumes, habilidade que encontramos em belas descrições de “Frei Apolônio”.
Todas essas peças literárias, entretanto, de um modo ou de outro, fracassaram em seu intento de revelar ao velho mundo a fantástica realidade da nova terra, abrindo-se um enorme abismo entre a imagem e a sua expressão. A “Carta sobre o Tocantins” (1654), do padre Antônio Vieira, segundo Soublin, no que tem plena razão, é a única exceção à mediocridade dos textos escritos por europeus sobre a Amazônia.
Por que aconteceu (e ainda acontece) essa defasagem? “A natureza portentosa da Amazônia faz o estrangeiro perder o ritmo e o fio da narrativa, permitindo que o contexto invada o texto”, explicou Soublin. Todavia, ele próprio mostrou-se afetado pelo mesmo problema, uma vez que, numa Feira Pan-Amazônica de livros, em vez de falar sobre autores que não captaram o fenômeno amazônico, deveria se ocupar daqueles que, nativos ou não, compreenderam e expressaram o espírito da região – Tenreiro Aranha, o primeiro poeta verdadeiramente amazônico, Raul Bopp, Euclides da Cunha, Abguar Bastos, Bruno de Menezes, Dalcídio Jurandir, Benedicto Monteiro, Ruy Barata, Ildefonso Guimarães, Yara Cecim, Sant’Ana Pereira, Thiago de Mello, Alfredo Garcia, Márcio Souza, Olga Savary e Vicente Franz Cecim, este extraordinário criador do mundo invisível de “Andara”, e um ou outro mais. Talvez o erro de ótica decorra do simples desconhecimento de que coisas boas e autênticas se vêm produzindo na Amazônia, o que, por sua vez, revela a incapacidade da região de mostrar-se ao mundo com a sua expressão autêntica, liberta do exotismo que sempre a caracterizou, mas que não é a sua única marca.
A miopia, que conduziu (e ainda conduz) tantos escritores e críticos à mediocridade, também pode resultar de mero preconceito contra tudo que é considerado “amazônico”. Jean Soublin, por exemplo, lembrou o caso de “A Muhraida”, escrita em 1785 pelo tenente português João Wilkens, epopeia dos índios Muras, do alto Amazonas, forjada nos moldes de “Uraguai” e “Caramuru” e publicada na mesma época, a qual, apresentando mais ou menos as mesmas virtudes e defeitos, não obteve, ao contrário das últimas, sucesso ou “fortuna crítica”. O mesmo paralelo se poderia fazer entre “Cobra Norato”, de Raul Bopp, e “Macunaíma”, de Mário de Andrade. O primeiro, embora superior e mais autêntico como obra de enraizamento do modernismo brasileiro, tem amargado quase completo ostracismo por causa de sua vinculação com a Amazônia. E o que dizer de Dalcídio Jurandir, autor “injustiçado”, como ainda hoje muitos reconhecem no Sul-Sudeste do país. E, agora, Vicente Franz Cecim, um escritor que honraria qualquer grande literatura do mundo mas que o Brasil, de costas para si mesmo, insiste em não querer ver, como não viu Ruy Barata e não enxerga Max Martins. Todavia, em vez de lamuriar, cabe a nós, amazônidas, reverter esse quadro.
* Nicodemos Sena é escritor e jornalista paraense radicado em Taubaté-SP; autor, entre outros, de “A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica” (Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos).
Autor do desenho: Jorge Palheta