por Marcelo Ariel
Rafael Dias : Como surgiu a sua epifania em torno da imagem da névoa em sua poesia?
Marcelo Ariel : O que chamo de névoa seria uma espécie de entrelugar, de zona intermediária entre a língua e as coisas e até entre a língua e a linguagem, se entendermos linguagem como natureza em sua ininteligibilidade primordial. Desde a infância sinto que há um não-reconhecimento , uma zona de estranhamento enorme entre o nome e as coisas, com o tempo identifiquei o desligamento entre a natureza e a cidade como um efeito disso.A imagem da névoa surgiu para mim como uma materialidade da metafísica que sustenta a zona industrial e a ideia de desenvolvimentismo, é e não é um deslocamento ( metáfora) . A dissipação da névoa equivaleria para mim a uma recuperação da aura de ininteligibilidade e indiscernibilidade das coisas, da natureza. Quando escrevo ‘ uma árvore na névoa’ para mim é o mesmo que dizer ‘ a vida interior em confronto com as limitações da nomeação e esquadrinhamento do mundo’ .
Rafael Dias : A névoa aparece de distintos modos na sua escrita: como combustão e fumaça no episódio da Vila Socó, em “Tratado dos anjos afogados”; como fusão ou hibridização de imagens, em “Retornaremos das cinzas…”; como poema-contínuo em “Névoa dentro da nuvem”. É isso? Há mais desdobramentos na sua visão da névoa nos dias atuais?
Marcelo Ariel : Ela aparece também como uma tentativa de confrontar o enigma do mundo como algo que acontece nas bordas da língua derivado da incapacidade de apreensão de estados de amálgama , de participação mesmo na ausência de esquemas da natureza raramente pensável embora seja extensão do corpo em suas topologias naturantes. Névoa também seria o lugar onde se insere uma certa ‘ perda de corpo’ e é curioso como Benjamin falava em perda de aura , acho que se perde o corpo antes de se perder a aura. A esta zona sem corpo, de fantasmagorização e posterior nadificação às vezes chamo metaforicamente de névoa, fiz isso no poema ‘ soco na névoa’ por exemplo. Há elementos de contradição no meu discurso que acho importantes porque a chamada linguagem poética é a sustentação de uma porosidade que não tem nada de etérea e abarca contrários como se fossem uma energia imantadora de expansões imanentes.
Rafael Dias : A névoa, para você, seria um paradoxo inelutável da nossa condição atual (um retorno ao “caos informe” da Antiguidade e, ao mesmo tempo, um caos virtual)?
Marcelo Ariel : De modo algum, ela está para estas coisas como a matéria escura para o céu azul. O caos informe que vc menciona era ainda uma topologia mesmo em camadas muito sutis e o caos virtual é um não-lugar. Olafur Eliasson conseguiu converter a névoa em um conceito de entrelugar que é , preste atenção o oposto do não-lugar, em uma de suas obras expostas no Brasil. no Sesc Pompéia. Os conceitos de caos que vc menciona são ligados, para mim, a um fracasso cartográfico, no sentido de uma potencialidade nomeadora do conhecimento , quase colonização metafísica mesmo, empreendida pelos antigos e no sentido de impotência cartográfica em relação aos mapas virtuais , no sentido de uma inapreensibilidade do não-imagético e do indizível pelo virtual, talvez eu tenha fugido de sua questão, mas não das dobras dela.
Rafael Dias : Você fala em “mapas virtuais” como uma contraposição ao “fracasso cartográfico” metafísico (de nomeação das coisas). Poderia explicar melhor o que seriam esses mapas? O mapa virtual seria o local primevo da névoa? Pergunto porque a névoa, dialeticamente, também se insere no caos virtual da modernidade (da “fumaça de pneus queimando”, na sua poesia, ao nevoeiro do ciberespaço) na sua descrição poética. Mas parece que você quer falar de uma névoa diferente, de uma névoa primitiva.Entendi a sua crítica aos dois conceitos de caos. Seu olhar é um retorno à poesia anterior à própria Antiguidade. E também à posição, na modernidade atual, da figura do poeta como um”guardião” da linguagem originária, como defendia Heidegger. É mais ou menos isso?
Marcelo Ariel: Quando me refiro a ‘ mapas virtuais’ é uma referência ao desejo de entropização da alteridade, capaz inclusive de criar um desejo de apagamento de alteridade por propagação de enevoamentos, o uso da informação como componente da máquina de esquadrinhamento e controle, no sentido metaforizado por Zamiatin na distopia ‘NÓS’ , o desejo de transparência total que está em oposição ao que Guattari/&/Rolnik mencionam em CARTOGRAFIAS DO DESEJO que seria o desejo de conhecimento e imersão nomádica e cartográfica nas alteridades, ao dizer ‘fracasso cartográfico’ tento nomear OS LIMITES ontológicos de uma certa metafísica das redes que se pretendem ARQUIVOS-NUVEM e se configuram como FÁBRICAS DE NÉVOA INFORMACIONAL que se interessam pela categorização behaviorista de controle do imaginário e de seus processos fotossíntéticos com as imagens do mundo.
Rafael Dias : Mapa virtual tem um sentido dialético, de abertura e enevoamento, mas também de encobrimento metafísico?
Marcelo Ariel: Sim, talvez seja necessária uma distinção entre cosmo virtual símile do cosmo natural e mapas virtuais.
Rafael Dias : Seria, mais ou menos, cosmo virtual (névoa que se desdobra em neblina, nevoeiro, fumaça, embotamento, opacidade, nitidez. “inapreensão do estados de amálgama” etc) como entre-lugar (limiar) entre o cosmo natural (aura) e os “mapas virtuais” (lugares fantasmáticos/fantasmagóricos do saber, do conhecimento e do poder)?
Marcelo Ariel: Seria cosmo virtual como símile /maquete do cosmo com suas potencialidades , inclusive insurrecionais e os mapas virtuais como camadas da sociedade de controle, embora possa haver outros usos para estes mapas dentro de uma extraterritorialidade, acho…
Rafael Dias é colaborador da Revista Continente e presta doutorado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina, esta entrevista foi parte da pesquisa para seu ensaio A NÉVOA DA MODERNIDADE , disponível na edição 218 da Revista Continente.
*Marcelo Ariel é poeta e performer, autor dos livros “TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS” (LetraSelvagem, esgotado), “RETORNAREMOS DAS CINZAS PARA SONHAR COM O SILÊNCIO” (Editora Patuá, esgotado) , “JAHA ÑANDE ÑAÑOMBOVY’A” (Editora Penalux) entre outros. Atuou no longa metragem “PÁSSARO TRANSPARENTE” de Dellani Lima e gravou o disco “SCHERZO RAJADA CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO”. Atualmente trabalha em seu primeiro romance “BREU FANTASMA” e coordena cursos de poética e anarcomagia. Lançou neste ano pela Kotter Editorial “OU O SILÊNCIO CONTÍNUO -POESIA REUNIDA -2007/2019” (https://kotter.com.br/loja/ou-o-silencio-continuo-poesia-reunida/ )