Coluna – Pauleta│Cuspiu pra cima e choveu

por Vinicius Comoti

ao revelar-lhes tudo isto

estou provavelmente me matando

antonin artaud

 

O morto se agracia na descasca do júbilo. Se recorda do futebol com as crianças e aumenta a perturbação dos vizinhos. O vento lhe imprime a pele rugosa e o catarro amarelo; no país dos covardes a ressaca do rei fedorento exalta a tirania sobre os dilúvios. Ele se aproxima do portão do hospício, observa as unhas roídas, pede um cigarro para o primeiro esqueleto que lhe capota na frente. Seria uma suruba de nuvens? O talco da infância? Sossega a calada no pestanejar de seus demônios, esbranquiçados pela água sanitária que está gotejando dentro do calabouço. Um pouco tímido, esvairado pela taturana que insiste no trajeto reto, confabulando os obstáculos com a humilde ignição do pesar, pedras rolam e a terra não presta. Apóstolos engravatados amanhecem na perdição da cana.

Escuta a bronca de alguém, amadurece ranços que lhe imploram comoção: “cavalos na chuva”, “orelha cortada”, “navalha e dinamite”. O prego enferrujado não mais lhe serve para a suspensão dos trapos. Quem manda brincar de assassino com as vespas? Corre. Se afoga no futuro com tamanho alento da imundície, desbunde chocho, pede a chave do porão e adentra a roda-gigante e o pau de sebo; regurgita sobre as pessoas, em especial, no pai revoltado com as estripulias da família enquanto a amante se diverte com o porteiro.

Chama perversa esta monotonia do templo, o silêncio e os pisca-piscas, cartilagens, sobrancelhas, o boi passando e as piranhas devorando o cachorro quente. O morto ajoelha na imaginação e se confronta com um paredão de concreto pichado: “sua luxúria foi crescer”.

O nascimento da noite ainda não coroa o corte umbilical, levanta a camiseta perfurada por brasa e se indigna com a pelota de sujeira resguardada em seu corpo. O meu tio morreu no século dezenove, depois de passar uma semana gemendo ao ser atingido por um fatídico coice. Fala, explica e detalha a arquitetura com as mãos cobertas por reboque. Não lhe atinge a gastura, a redoma, a história da coleção de figurinhas; sentará no ápice da montanha e na primeira inteiração com os deuses, ficará completamente borrado.

Quis aventura e comprou hortaliças rejeitadas pelo mercado. Espatifado no lar, balbucia a indigestão com os anos da escola, tramboio se esfarelando, desenhou falos no caderno da turma toda para chegar na prova e se redimir com a bela vulva encrespada em sua sapiência. Realmente hoje não pode ser domingo, pois se fosse, o frescor engataria outros sonhos abraçados no arame farpado, bacorejo de fofocas das quais a chuva pode trazer, o horizonte emendado pelo the end.

A novidade não lhe pertence, conturba o retrocesso, se admiti mergulhado na finesse do estrangulado presente do amigo secreto. Um pacote de cuecas, que jamais sorveu nádegas avultas e o tesouro desbravado. Seria feriado? Carrapatos? Outro inimigo alimentado no canto da boca do tubarão? Eis que o funeral se dilata no plano-sequência, restos de solados, medalhinha no formato de meia maça, mãos dadas segurando o suor. O pior da megera era a sua teimosia com os latidos, as câimbras nas coxas, e o colar de pérolas que ganhou do ladrão pelo qual se amansou e ajudou na rarefação de sua guerra espiritual.

 

*Entre a libido das araucárias e a baderna dos fantasmas, Vinicius Comoti se esconde pelo Ahú, abrolho menor de Curitiba. Costuma se debruçar sob o cinema brasileiro, como também vislumbrar em cada folha que despenca no seu caminho, a força de um verso sínico. Publicou os livros Lanzurapa (2016) e Leite com Manga (2018). 

Fotografia do amigo José Fernando da Costa, o Zé

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