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Nunca esquecerei aquele poeta genial dando passos em círculos na Avenida Paulista à altura da Casa das Rosas em busca dum vergonhoso guaraná; patético para um antigo maldito abatido pelo Parkinson. Mestre Roberto Piva sequioso por todos desregramentos agora preso a um corpo que não o obedece e reduzido a pequenos gostos prosaicos. Piva cunhou um vezo degradante da nossa literatura: “o patotismo literário”. Por que não dizer “patotismo cultural”? O compadrio, o beneficiamento opiniático, a indicação de apaniguados, a servidão dos sequazes do poder ou mídia de plantão. Patota que premia, promove, protege e persegue os dissonantes. Colegas de redação de grandes jornais, afilhados da academia, sem falar nos joguinhos de sedução das megaeditoras sobre os agentes do sistema. O maldito autêntico só quebra o gelo sobre sua produção quando concede virando puta por um dia. Quem escreve o que Piva, Hilda Hilst ou Orides Fontela escreviam tem que se resignar ao gosto de escrever por escrever sem olhar para os lados, fazer o ofício sagrado sem render-se à angústia da pouca visibilidade. A turma de Bloomsbury não estranhava quando vendia mais de 50 livros? Virginia não se questionava sobre o que tinha feito de errado quando alcançava meia centena de leitores raros? Escrevo porque sou compelido a isso; literatura para mim sempre foi essa “curtição da linguagem”, o desvio de função da palavra em nome do imaginário e do encanto. O escritor de invenção é sempre um transviado, um marginal de vicinais, um goliardo monge beberrão. Sempre me pergunto onde estão os mais vendidos daquelas listinhas amarelas da Veja dos anos 70?

O maldito autêntico só quebra o gelo sobre sua produção quando concede virando puta por um dia.

Críticos de antanho me fiavam no ranzinza Wilson Martins no Globo e no doce Léo Gilson Ribeiro no extinto Jornal da Tarde. E imaginar que guardava os cadernos literários daquela época, com artigos e ensaios de Antonio Candido, Décio Pignatari, Gerardo Mello Mourão, Décio de Almeida Prado, Geraldo Ferraz, onde hoje a gastronomia e o entretenimento reles substituíram a densidade cultural. Aprendi crônicas com Drummond no já citado Jornal da Tarde, Carlos Heitor Cony na Manchete, Raquel de Queiroz no Estadão. O primeiro Kafka a gente nunca esquece…. uma edição barata do Círculo do Livro traduzida pelo velho Torriere Guimarães do francês meio tosca mas que deu para o gasto de me introduzir ao fantástico em todos sentidos plurais do fantástico. O que caía nas mãos faria parte da miscelânea que compôs minha cultura onívora. Recordo de A ilha do Fernando Moraes de bolso que nem sei como escapou durante a ditadura e me levou ao fascínio por Fidel e seu projeto revolucionário?! Lia-se muito Lygia Fagundes Telles, mas muito mesmo, como em poesia Mário Quintana era onipresente. Faziam uma literatura de alta qualidade acessível e esse o grande lance: contar estória inovando. Imersos nas obras ruminando pensamentos, parindo fórmulas naturalmente do transe como nossa Clarice Lispector do transe para o transe entendido por leitores persistentes. Depois de Proust e Clarice só encontro o espanto com reservas mas encontro. O naturalismo me cansa, mas leio. Por vezes prefiro a literatura barata aos pretensiosos de embalagem, o prêt-à-porter de ocasião para deleitar interpretantes rasos. Diante do tsunami digital nunca foi tão importante o rastreio seguro, a distinção de bases sólidas para a retenção do fluxo através dum texto significante. Distanciamento, perspectiva isenta, procurar nunca incorrer nos prodígios falsos da “Teoria do Medalhão”. Mas que conto revelador desse nosso Machado! Todos apetrechos midiáticos que norteariam a publicidade e quantos escritores/escritoras não foram dela saído? Distinguir o que espuma e o que onda, o legítimo fruto do talento e o embuste bem fornido pela propaganda e/ou recauchutado pelo “patotismo”? Como é difícil encontrar no Brasil hoje uma Agustina Bessa Luis ou Alan Pauls, sem falar lógico num Lobo Antunes.

Literatura não é “dar match”, estou à cata de escorregões sinápticos.

Literatura não é “dar match”, estou à cata de escorregões sinápticos. Inquietação teu nome é dificuldade. Na poesia nunca cansamos de nos encantar com outras veredas. Não que seja mais fácil de fazê-la que a prosa, mas cansa menos a coluna vertebral e lemos/fazemos mais nós poucos que híbridos somos poetas e prosadores. Empenhemo-nos a vida literária por todos os poros construindo a obra sem pensar na obra. Como diz Blanchot: “A obra exige muito mais: que não nos preocupemos com ela, que não a busquemos como um objetivo, que tenhamos com ela a relação mais profunda da despreocupação e da negligência (…) É preciso pois tentar situar, na obra literária, o lugar da relação nua, estranho a todo mundo e toda servidão, linguagem que fala somente aquele que não fala para ter ou para poder, para saber e possuir, para se tornar mestre e mestre de si mesmo, isto é, a um muito pouco homem”. Ah ! O livro por vir de Blanchot que não me sai do lado que nos ensina que difícil não é o dilacerante! A dureza da obra nasce de um descompromisso calculado. Quanta tautologia nos que veem brilhantismo, quanta manha ao que atribuem estro. O que vai maturando até se tornar literatura de verdade nunca sabemos. Não imagino Pessoa elucubrando logicamente O Livro do Desassossego mas veio. Nesse interregno de espanto diante da IA e da tirania do digital vamos recolhendo cacos e refazendo rumos de alguma literatura brasileira de invenção ainda possível.

Flávio Viegas Amoreira é prosador e poeta. Pela Kotter, lançou as narrativas breves de Apesar de você, eu conto e os versos de Whitman e Pessoa, meus camaradas.

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